terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sobre dois Lírios

Sabe aquelas pessoas que amamos mesmo tendo sido privadas do convívio?
Sabe aquele amor terno, doce, puro e forte, que colore o coração como se fossem várias borboletas coloridas sobrevoando e deixando um rastro de luz por onde passam, como se tivessem o poder de dissipar toda e qualquer saudade pesada e triste?




Sinto que há um laço invisível que me une a vocês, como se fosse um cordão transparente que reflete todas as cores mais belas, que sequer existem aqui nesse mundo onde vocês apenas passaram e foram rapidamente recolhidas por um sopro.
Lembro-me como se fosse hoje de vocês duas na barriga da mamãe fazendo a maior algazarra quando eu chegava perto, fosse no banho – passando um bom tempo passando o sabonete na barriga da mamãe e conversando com vocês – ou antes de dormir, quando enchia vocês duas de beijos e podia ver seus pezinhos, pegá-los e gritar “Olha, mamãe, um pezinho!”.
Como vocês sabem, sou um ser extremamente desapegado e desprovido de sentimentos convencionais, mas devo confessar que há dias em que sinto uma dorzinha bem aguda quando penso que poderíamos estar as três juntas, cada uma com seu jeitinho, com seus gostos, opiniões e forma de encarar e viver a vida.
Já faz 18 anos e só agora consegui escrever algo relacionado a vocês duas, minhas pequenas. Durante um bom tempo, não podia falar em vocês sem chorar.
Quando soube que vocês estavam morando na barriga da mamãe, senti uma felicidade imensa, uma gratidão maior ainda. Me senti privilegiada e honrada por ter sido escolhida para ser irmã de duas criancinhas, porque vocês só nos deixaram saber que eram menininhas quando nasceram.
Quando a mamãe e o papai cogitaram comprar os bercinhos de vocês, lembro que chorei uma noite inteira, inconformada, porque queria que vocês dormissem comigo, na minha cama. Onde já se viu coloca-las em berços? Um insulto ao amor que já crescia dentro do meu peito!
Como vocês sabem, eu tinha apenas 3 aninhos e não pude vê-las nem tocá-las. Mas quero deixar aqui nessa carta parte do amor que sinto por vocês. Dizer que as carrego comigo sempre, que a cada vez que tenho de responder que sou filha única sinto uma pontadinha no coração, que ainda vejo as fotinhos de vocês dentro da barriga da mamãe e me pergunto o porquê de terem sido levadas embora tão abruptamente. Sempre que penso em vocês, é como se a vida ficasse mais doce, mais simples. É como se vocês trouxessem paz ao meu coração.
 Saibam que amo incondicionalmente vocês duas, de onde quer que estejam e espero pelo dia em que poderemos nos reencontrar!

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Delirium

            
Emergindo do buraco negro, podiam ser vistos alguns fios pretos de cabelo, iluminados pelas luzes das velas que derretiam e melavam os candelabros de ouro, grandes, reluzentes e ardentes, na noite fria de Outubro. Seguindo os fios, lá estava seu corpo, deitado, gelado, pálido, inerte. Lábios entreabertos e pálidos, olhos abertos e fixos.
Gritos. Altos. Desesperados. Aflitos.
Na urna de ébano, seu corpo gelado e rígido repousava, passando aos espectadores uma expressão de sono profundo e relaxante. Sua face fora maquiada. Seus lábios, agora, eram rosados e estavam fechados, costurados, para sempre calados. Seus olhos colados, permanentemente cegos. Seus cílios faziam sombra.
Entre seus dedos, estava um terço, desrespeitosamente colocado ali.

 Riverside Church, Harlem, New York City. Tumblr

            Havia mais ou menos 50 pessoas chorando sua morte. Fungando com os narizes escorrendo, lutando para que a coriza não escorresse e invadisse os lábios. O barulho dos narizes ecoava na sala fria de mármore.
Todos cochichavam simultaneamente, era um tormento, um momento de puro lamento e demência. Soluços, narizes escorrendo, cochichos, gemidos, faces desfiguradas pelo choro.
Como podia, apenas uma morte, afetar a tantas pessoas? Quantas delas estavam lá realmente por amor? Quantas por remorso? Quantas por exibicionismo?

            A porta abriu. Entrou terra vermelha, trazida pelo vento e pelos passos do sapato de cromo alemão, coberto bela batina preta do amável senhor com um kipá na careca. Sua face altruísta trazia algum tipo de falso conforto aos espectadores. Parou ao lado da urna e começou a ladainha com sua bíblia em mãos.
Dava para ouvir os barulhos dos narizes e os gritos abafados de desespero aumentando gradativamente a intensidade e o volume.
O barulho do vento competia com a voz do sacerdote.

            Todas as velas foram apagadas pelo vento gelado que viera levar consigo a pobre alma amputada precocemente do corpo que lhe fora dado. Silêncio imediato. Calafrios. Medo. Fé cristã momentaneamente esquecida.

            Amanhece. O céu alaranjado realça as gotas de orvalho na grama do cemitério.
Uma cova. Um caixão. Vinte sobreviventes à madrugada de despedida da massa de músculos, nervos, veias, órgãos, líquidos e excrementos, que rompeu o contrato de aluguel expulsando a inquilina chamada Alma e pagando a multa contratual com a não existência e seus mistérios.
O corpo começava a expelir os líquidos, ficar roxo, inchado, desfigurado. Adquirindo a feição de dor e desespero em contrapartida à expressão inerte com que fora encontrado.

            Enquanto a urna é colocada na cova, passa correndo um palhaço com roupas sujas, rasgadas, fedendo a crack e cachaça barata. Ele gargalha, grita, espirra água nas pessoas, vira cambalhotas, vomita nos pés dos sofredores. Cospe na cova e sai gritando, de braços abertos, recitando algum poema alegre, um Ode à Vida, atormentando tanto quanto as melodias de Vivaldi.
Ao sair correndo e passar pelo portão do cemitério, é atropelado por um caminhão, tendo seu cérebro esmagado, seus miolos espalhados pela avenida.
Gritos de horror. Desmaios. Choque. Terror.
Todos perdem completamente o foco no enterro e dirigem-se ao local da nova desgraça. Desgraça fresca, cheiro de corpo recém-morto, sangue quente, miolos macios.
É quando o palhaço abre os olhos e solta uma risada profundamente perturbadora e dissimulada.

            Todas as pessoas somem, viram fumaça negra, pó.

O motorista desce do caminhão, recolhe o corpo e seus miolos, jogando-os dentro do caminhão escrito “Açougue”, fecha as portas e segue viagem, afinal, o show deve continuar a qualquer preço.

Ali se ia

   - Alícia!
    
Imagem: Avenida Paulista, São Paulo, SP, Ana Paula Costa. Tumblr


   Ouvia o eco de sua própria voz buscando por Alícia naquele mar de gente indo e vindo, falando ao celular, gesticulando, se misturando na faixa de pedestres até que o semáforo ficasse novamente vermelho e uma fila de carros levasse Alícia embora de vez de sua vida.
Abaixou a cabeça, olhou seus pés, suas mãos na altura do quadril, seus braços largados ao longo do corpo. Respirou fundo e prendeu o ar numa tentativa inútil de conter a dor. Fechou os olhos e lembrou daqueles dedos finos e delicados escorregando de suas mãos para nunca mais tocá-la. Pôde sentir o perfume daqueles fios dourados – quase brancos – sendo despenteados pelo vento enquanto Alícia corria sem rumo.
Virou-se devagar e sentou-se no banco mais próximo. Com as mãos repousadas sobre os joelhos, lembrou do dia em que se conheceram. A primeira vez em que se deparou com o encanto daquele sorriso largo no rosto adornado por sardas pequenas e harmoniosas, que contornavam os olhos pequeninos e azulados. Lembrou-se da sensação “gelada” que tomou conta de seu peito naqueles cinco segundos em que Alícia sorriu. Sentiu as lágrimas quentes e pesadas caírem de seus olhos e serem absorvidas pelo algodão de sua calça marrom.

   - Ah, Alícia! – Sussurrou quando, de cabeça baixa, enfiou os dedos entre os fios de cabelo até chegar com as mãos à nuca, onde cruzou os dedos e ficou imóvel, apenas ouvindo o fluxo sanguíneo e sentindo seu coração bombear o sangue cada vez mais rápido e com mais força.

   Entrou no apartamento – ainda repleto de Alícia; seu perfume, sua bagunça, a louça suja na pia, os chinelos desalinhados ao lado de sua cadeira, o cinzeiro sem caber mais um átomo sequer – tirou os sapatos e deparou-se com sua face desfigurada diante do espelho. Olhou-se de cima abaixo. Pensou como seria sua vida sem Alícia dali em diante. Sentiu seu peito formigar e arder.
Com os cabelos úmidos de suor e colados à testa, foi ao banheiro. Abriu a torneira, ouviu a água correr por alguns instantes. Colocou o rosto embaixo d’água até que ficasse sem ar. Fechou a torneira, levantou o rosto e ouviu barulho de vidro se partindo. Quebrara o copo que Alícia havia esquecido no banheiro, como fazia todos os dias. Viu sua mão esquerda cortada e sangrando; não doía. Passou a mão no espelho à sua frente, como se borrasse sua própria imagem. Não se reconhecia mais. Alícia havia levado consigo sua identidade, seu coração, sua garra de viver.


   - Rápido, moça! Tem um corpo aqui no canteiro! – Berrava o porteiro – Não, são sei se é homem ou mulher, tem sangue pra tudo quanto é lado, não consigo chegar perto!