Emergindo
do buraco negro, podiam ser vistos alguns fios pretos de cabelo, iluminados
pelas luzes das velas que derretiam e melavam os candelabros de ouro, grandes,
reluzentes e ardentes, na noite fria de Outubro. Seguindo os fios, lá estava
seu corpo, deitado, gelado, pálido, inerte. Lábios entreabertos e pálidos,
olhos abertos e fixos.
Gritos. Altos.
Desesperados. Aflitos.
Na urna de
ébano, seu corpo gelado e rígido repousava, passando aos espectadores uma
expressão de sono profundo e relaxante. Sua face fora maquiada. Seus lábios,
agora, eram rosados e estavam fechados, costurados, para sempre calados. Seus
olhos colados, permanentemente cegos. Seus cílios faziam sombra.
Entre seus
dedos, estava um terço, desrespeitosamente colocado ali.
Riverside Church, Harlem, New York City. Tumblr
Havia mais ou menos 50 pessoas
chorando sua morte. Fungando com os narizes escorrendo, lutando para que a
coriza não escorresse e invadisse os lábios. O barulho dos narizes ecoava na
sala fria de mármore.
Todos
cochichavam simultaneamente, era um tormento, um momento de puro lamento e
demência. Soluços, narizes escorrendo, cochichos, gemidos, faces desfiguradas
pelo choro.
Como podia,
apenas uma morte, afetar a tantas pessoas? Quantas delas estavam lá realmente
por amor? Quantas por remorso? Quantas por exibicionismo?
A porta abriu. Entrou terra
vermelha, trazida pelo vento e pelos passos do sapato de cromo alemão, coberto
bela batina preta do amável senhor com um kipá na careca. Sua face altruísta
trazia algum tipo de falso conforto aos espectadores. Parou ao lado da urna e
começou a ladainha com sua bíblia em mãos.
Dava para
ouvir os barulhos dos narizes e os gritos abafados de desespero aumentando
gradativamente a intensidade e o volume.
O barulho do
vento competia com a voz do sacerdote.
Todas as velas foram apagadas pelo
vento gelado que viera levar consigo a pobre alma amputada precocemente do
corpo que lhe fora dado. Silêncio imediato. Calafrios. Medo. Fé cristã
momentaneamente esquecida.
Amanhece. O céu alaranjado realça as
gotas de orvalho na grama do cemitério.
Uma cova. Um
caixão. Vinte sobreviventes à madrugada de despedida da massa de músculos,
nervos, veias, órgãos, líquidos e excrementos, que rompeu o contrato de aluguel
expulsando a inquilina chamada Alma e pagando a multa contratual com a não
existência e seus mistérios.
O corpo
começava a expelir os líquidos, ficar roxo, inchado, desfigurado. Adquirindo a
feição de dor e desespero em contrapartida à expressão inerte com que fora
encontrado.
Enquanto a urna é colocada na cova,
passa correndo um palhaço com roupas sujas, rasgadas, fedendo a crack e cachaça
barata. Ele gargalha, grita, espirra água nas pessoas, vira cambalhotas, vomita
nos pés dos sofredores. Cospe na cova e sai gritando, de braços abertos,
recitando algum poema alegre, um Ode à Vida, atormentando tanto quanto as
melodias de Vivaldi.
Ao sair
correndo e passar pelo portão do cemitério, é atropelado por um caminhão, tendo
seu cérebro esmagado, seus miolos espalhados pela avenida.
Gritos de
horror. Desmaios. Choque. Terror.
Todos perdem
completamente o foco no enterro e dirigem-se ao local da nova desgraça.
Desgraça fresca, cheiro de corpo recém-morto, sangue quente, miolos macios.
É quando o
palhaço abre os olhos e solta uma risada profundamente perturbadora e
dissimulada.
Todas as pessoas somem, viram fumaça
negra, pó.
O
motorista desce do caminhão, recolhe o corpo e seus miolos, jogando-os dentro
do caminhão escrito “Açougue”, fecha as portas e segue viagem, afinal, o show
deve continuar a qualquer preço.
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