quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Delirium

            
Emergindo do buraco negro, podiam ser vistos alguns fios pretos de cabelo, iluminados pelas luzes das velas que derretiam e melavam os candelabros de ouro, grandes, reluzentes e ardentes, na noite fria de Outubro. Seguindo os fios, lá estava seu corpo, deitado, gelado, pálido, inerte. Lábios entreabertos e pálidos, olhos abertos e fixos.
Gritos. Altos. Desesperados. Aflitos.
Na urna de ébano, seu corpo gelado e rígido repousava, passando aos espectadores uma expressão de sono profundo e relaxante. Sua face fora maquiada. Seus lábios, agora, eram rosados e estavam fechados, costurados, para sempre calados. Seus olhos colados, permanentemente cegos. Seus cílios faziam sombra.
Entre seus dedos, estava um terço, desrespeitosamente colocado ali.

 Riverside Church, Harlem, New York City. Tumblr

            Havia mais ou menos 50 pessoas chorando sua morte. Fungando com os narizes escorrendo, lutando para que a coriza não escorresse e invadisse os lábios. O barulho dos narizes ecoava na sala fria de mármore.
Todos cochichavam simultaneamente, era um tormento, um momento de puro lamento e demência. Soluços, narizes escorrendo, cochichos, gemidos, faces desfiguradas pelo choro.
Como podia, apenas uma morte, afetar a tantas pessoas? Quantas delas estavam lá realmente por amor? Quantas por remorso? Quantas por exibicionismo?

            A porta abriu. Entrou terra vermelha, trazida pelo vento e pelos passos do sapato de cromo alemão, coberto bela batina preta do amável senhor com um kipá na careca. Sua face altruísta trazia algum tipo de falso conforto aos espectadores. Parou ao lado da urna e começou a ladainha com sua bíblia em mãos.
Dava para ouvir os barulhos dos narizes e os gritos abafados de desespero aumentando gradativamente a intensidade e o volume.
O barulho do vento competia com a voz do sacerdote.

            Todas as velas foram apagadas pelo vento gelado que viera levar consigo a pobre alma amputada precocemente do corpo que lhe fora dado. Silêncio imediato. Calafrios. Medo. Fé cristã momentaneamente esquecida.

            Amanhece. O céu alaranjado realça as gotas de orvalho na grama do cemitério.
Uma cova. Um caixão. Vinte sobreviventes à madrugada de despedida da massa de músculos, nervos, veias, órgãos, líquidos e excrementos, que rompeu o contrato de aluguel expulsando a inquilina chamada Alma e pagando a multa contratual com a não existência e seus mistérios.
O corpo começava a expelir os líquidos, ficar roxo, inchado, desfigurado. Adquirindo a feição de dor e desespero em contrapartida à expressão inerte com que fora encontrado.

            Enquanto a urna é colocada na cova, passa correndo um palhaço com roupas sujas, rasgadas, fedendo a crack e cachaça barata. Ele gargalha, grita, espirra água nas pessoas, vira cambalhotas, vomita nos pés dos sofredores. Cospe na cova e sai gritando, de braços abertos, recitando algum poema alegre, um Ode à Vida, atormentando tanto quanto as melodias de Vivaldi.
Ao sair correndo e passar pelo portão do cemitério, é atropelado por um caminhão, tendo seu cérebro esmagado, seus miolos espalhados pela avenida.
Gritos de horror. Desmaios. Choque. Terror.
Todos perdem completamente o foco no enterro e dirigem-se ao local da nova desgraça. Desgraça fresca, cheiro de corpo recém-morto, sangue quente, miolos macios.
É quando o palhaço abre os olhos e solta uma risada profundamente perturbadora e dissimulada.

            Todas as pessoas somem, viram fumaça negra, pó.

O motorista desce do caminhão, recolhe o corpo e seus miolos, jogando-os dentro do caminhão escrito “Açougue”, fecha as portas e segue viagem, afinal, o show deve continuar a qualquer preço.

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