quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Crônicas do Cotidiano X - Quebrou? A gente pode consertar.

            Esses dias me peguei pensando sobre como deve ser mágico conhecer alguém durante a adolescência, do auge dos 15/16 anos, se apaixonar, viver todo aquele encanto afobado, desesperado e desajeitado de quando temos tal idade, namorar até a chegada da idade adulta, noivar, montar a casa, deixa-la com a carinha do casal, planejar o casamento, a festa, trocar alianças e fazer juras de amor eterno olhando nos olhos daquela pessoa que mesmo depois de adulta te deixa com a mesma sensação de quando tinham 16 anos e se apaixonaram, ter as famílias reunidas para celebrar, saber que dali em diante não se é mais um só, são duas famílias entrelaçadas, são duas vidas entregues e dispostas a passar por cima de inúmeras adversidades afim de construírem uma história sólida.

            Passa a festa, vem o dia a dia. As manias, as bagunças, os gostos, as contas, as sogras, os trabalhos, a irritação, as preocupações, os filhos! Quando os pés começam a retornar à realidade, eis que chegam eles, pequeninos, frágeis, dependentes, ladrões de noites de sono e pratos de comida quentes. Nesse momento, é hora de união, de admirar aquela coisinha mole e sorridente que nasceu da união, da superação dos perrengues e da divisão de alegrias e sonhos. Em pouco mais de quatro ou cinco anos, já são dois ou três pequenos correndo pela casa, jogando bola na sala, desenhando em paredes com giz de cera, fazendo birra diante da comida no prato, aparecendo no quarto do casal no meio da madrugada com a carinha amarrotada e os cabelos ouriçados pedindo colo.

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            Mais uns 20 anos e lá está a mesa da ceia de Natal. Os filhos e filhas já casados, e formados. Dois netinhos correndo pela casa, pegando porta retratos da estante e perguntando aos avós quem são as pessoas, uma filha sentada no sofá com o barrigão de 8 meses redondinho, sentindo o bebê mexer e pegando o pezinho, a outra filha servindo as crianças, os genros conversando sobre banalidades do mundo masculino. Todos sentam-se à mesa e comemoram a chegada de mais um natal, de mais um ano unidos e aguardando a chegada do novo membro da família.
            Ao final da noite, cada um dorme em um canto da casa, embora todos os quartos ainda estejam prontos para receber os filhos e filhas quantas vezes forem necessárias. As crianças, desmaiadas e descabeladas.
            Em momentos como este, creio que as “matrizes” da família devam sentir-se tomadas por um sentimento inenarrável. Deve ser uma espécie de gratidão, de segurança, de orgulho. Depois de tantos anos, de tantos acontecimentos, de tantos perrengues e conquistas, olhar para os lados e ver aquele adolescente por quem se apaixonou e com quem se casou, já de cabelos brancos, ver os filhos e filhas já com suas próprias famílias e seguindo suas próprias vidas, voando com suas próprias asas para construírem seus próprios ninhos... Ah, deve ser gratificante demais construir uma vida ao lado de alguém que conhece teu melhor e teu pior, que sabe das tuas flores e espinhos, que não soltou tua mão mesmo quando o vendaval foi forte, que soube comemorar e festejar as conquistas comuns e individuais.
            Pensando e escrevendo sobre isso, concluo que concordo com uma frase que vi no facebook há alguns anos e achei absurda: “No meu tempo, quando algo quebrava, a gente não jogava fora. Éramos ensinados a consertar”. Talvez eu tenha aquilo que chamam de “Alma Antiga”, talvez eu sonhe com uma vida construída ao lado de alguém com quem seja possível uma relação sólida e segura, alguém que me permita amar e que me ame de volta sem restrições, alguém que me faça ter certeza de que por mais forte que seja a tempestade, nossas mãos não irão se perder, alguém que tenha a disposição de “consertar” ao invés de “jogar fora”. Talvez eu sonhe demais, queira demais, sinta demais... Ou talvez não...

            

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Crônicas do Cotidiano IX - Febre, Flores e Quadros Indolores

            Há alguns dias, estava mexendo no bloco de notas do celular e me deparei com o seguinte: “amar em terceira pessoa é fácil -> escrever sobre”. A única coisa que consigo lembrar é que essa anotação foi feita antes de dormir em alguma noite que já se perdeu no tempo e levou consigo o que eu tinha a dizer sobre “amar em terceira pessoa ser fácil”. Simplesmente não consigo estabelecer algum tipo de conexão com a frase e meus sentimentos, o que torna impossível escrever.
            Mas como cabeça de aquariana é um poço de devaneios, decidi escrever sobre como estou me sentindo após uma febrinha de 38,7 º. Acho que nunca senti tanto frio assim. Não sabia se me cobria, se tomava um banho escaldante, se tomava antitérmico ou se chorava (sim, estava com tanto frio e dor no corpo que deu uma puta vontade de chorar). Optei pelo banho escaldante e meus cobertores. Óbvio que a febre não cedeu e tive que tomar um antitérmico e esperar pacientemente.

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            Conforme a febre foi cedendo, senti como se ela levasse embora de mim inúmeros sentimentos que o tempo tornou obsoletos, que ficarão apenas em minha memória, como pétalas desbotadas e sem perfume, colocadas num quadro pendurado na tal “parede da memória”, mas sem doer. Sim, sem doer... essa é a parte mais fascinante. Nunca me passou pela cabeça ter quadros indolores nessa parede. Todos os que até agora foram pendurados nela, me fizeram sentir como se tivessem sido brutalmente arrancados de dentro do meu peito e pendurados ainda pulsando, morrendo lentamente, numa espécie de niilismo existencial.
            Agora, entre Halls menta-prata, Sam Smith, Marlboro Gold e uma tosse hiper chatinha, consigo sentir meu corpo mais leve e meu coração limpo, florescendo novamente entre brincadeiras bobas, gargalhadas, apelidinhos escrotinhos, caretas, coices e ternura.
            Me sinto leve e livre. Sem febre, sem dor, sem quadros com sentimentos amputados pendurados na parede, sem pesar, sem temor.

                                   Me sinto em paz.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Minha Hora

            E lá estava ele. Mais uma vez impassível, sentado em sua poltrona marrom estofada. Pernas cruzadas, sapatos italianos, calça cinza deixando sua meia à mostra. Apoiava o cotovelo direito no braço da poltrona, segurava o livro com a mão esquerda. Na mesa ao lado, uma xícara branca com café quente. Entre um gole e outro, ajeitava os óculos e passava os dedos entre os fios grisalhos de seu cabelo que caía nos olhos.
            Sempre fora um homem introspectivo e indiferente ao resto do mundo. Completamente incapaz de reparar a beleza do pôr do sol na janela de 5 metros bem ao lado.
            Quando casamos, há 25 anos, ele era um menino franzino, sempre com seus livros, imerso em sua mente, que deve ser uma espécie de Jardim Suspenso, já que sempre passou tanto tempo por lá, passeando entre suas belezas ocultas.
            Hoje, do auge de seus 50 anos, ele já não consegue mais conversar sobre banalidades, por mais que se esforce. Seus olhos já não possuem mais brilho, movimentam-se mecanicamente – deve ser algum tipo de sequela do hábito de ler compulsivamente – e mal conseguem seguir as curvas dos meus cachos.
            Passei algum tempo observando-o – umas 3h mais ou menos – e ele sequer desconfiou; não consegue mais sentir a presença de quem quer que seja. Onde está o homem por quem me apaixonei?
            Fechei os olhos, respirei fundo, me apoiei no braço do sofá – deixei a marca de meus dedos no estofado branco – e fui até nosso quarto. Abri o armário. Tantos anos, tantas histórias penduradas naqueles cabides, tantos risos e lágrimas embolorados e felpudos... Melodias distorcidas, tapes acelerados...
            Estiquei o corpo ao máximo e alcancei a mala. Aquela mala marrom com alça, que compramos quando ainda namorávamos, quando viajamos escondidos ao litoral – dois magricelas inconsequentes, com exatos RS143,20 na carteira. Ah, a juventude! Por alguns instantes, acariciei a mala como se fosse o rosto dele quando ainda tinha algum tipo de expressão. Senti meus olhos ficarem marejados. Engoli o nó da garganta, respirei fundo, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e comecei a retirar meus cabides, dobrar peça por peça e colocar com carinho dentro da mala – Era como se eu estivesse tornando concreto o que venho fazendo com meus sentimentos e emoções nos últimos anos, dobrando e guardando com carinho numa mala.



            Fechei as duas dobradiças da mala, sentei na cama e olhei para a foto no meu criado mudo. Nós dois e nossos filhos. Melissa sorrindo com suas sardinhas e cachos ruivos. Lucca com pose de homem, igual ao pai. Ele esboçando um sorriso e eu no meio de todos, sorridente, mas com o olhar melancólico. Passei as pontas dos dedos no vidro, dei um beijo, abri a mala, guardei e fechei de vez, para sempre.
            Saí do quarto e lá estava ele, sentado como quando fui para o quarto. Parei ao seu lado, coloquei a mala no chão, retirei o livro de sua mão, olhei fundo em seus olhos. Segurei seu rosto com as duas mãos e dei um beijo em sua testa.
            - Obrigada. Obrigada pelos nossos filhos. Obrigada pelos sonhos. Obrigada por nós, pelo que fomos e pelo que nos tornamos. Obrigada por ter feito com que eu o amasse tanto a ponto de ter coragem para seguir com minha vida e respeitar teus momentos, tua solidão inata. Eu te amo aqui ou em qualquer outro lugar do mundo e você sabe disso. Cuida bem de você, porque chegou a minha hora, a hora de cuidar aqui de dentro.

            Peguei minha mala e saí. Sim, as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto sem consentimento. Entrei no elevador, desci no térreo, saí pelo portão, coloquei a mala no chão e respirei fundo o ar quente da chuva de fevereiro. Estava livre. Livre para amar, para ser amada, para cuidar de mim mesma, para existir!

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Crônicas do Cotidiano VIII - Sobre anjos

            Saí de casa em pleno 1º de janeiro. Andei até a esquina, desci a rua e fui para o ponto de ônibus. Passava das 20h e não havia uma alma na rua. Geralmente, não sinto medo ao andar sozinha à noite pelas ruas, mas confesso que fiquei um tanto quanto petrificada quando olhei para o final da rua e vi um sujeito super “mal encarado” vindo, andando como se fosse o dono do pedaço, como se fosse um leão andando em sua jaula, pronto para atacar a qualquer momento. Procurei manter a calma e ainda me dei uma bronca mentalmente “Não, Gabriela, não julgue as pessoas apenas pela aparência, com base em estereótipos que te foram ensinados durante toda a vida. As pessoas são mais do que isso”, mas foi em vão. Continuei com o cu na mão.

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            Quanto mais o sujeito se aproximava, mais eu procurava me manter calma, mesmo com vontade de sair correndo, gritando e chorando de medo. Por alguns instantes, achei que ele fosse atravessar a rua – Fo-deu, pensei – mas ele não o fez e eu suspirei aliviada. Nessa hora, vi que havia uma senhora na garagem de casa, com seus 500 gatinhos, falando ao telefone. Caso algo me acontecesse, eu teria a quem gritar por um “help”.
            Depois que o cidadão mudou de quarteirão e seguiu seu rumo, fiquei mais calma, mas ainda com medo. Nesse momento, alguém soltou um cachorro preto e grande para dar uma volta na rua e mijar a cada metro que andasse. O cão andou pelo quarteirão e veio até mim. Lógico que estiquei a mão e falei fininho com ele. Meio assustado, veio me cheirar – me revistar, na verdade – e eu achei a coisa mais doce do mundo. Fiz carinho no rostinho dele e parei, foi quando ele esfregou a carinha na minha perna, com as orelhinhas para trás e o rabinho balançando, como quem dizi
a “faz mais”. Sorri e fiquei fazendo carinho nele, que após alguns instantes, saiu de perto, foi até o meio da rua e voltou, permanecendo ao meu lado.

            Vi meu ônibus na esquina do quarteirão da frente. Suspirei aliviada.
            Quando o ônibus parou, me despedi do meu colega e entrei. Ele só foi embora depois que o ônibus saiu.
            Quem me conhece, sabe que não sou nada muito religiosa. Tenho minha crença no amor universal, no respeito, na compaixão e na sinceridade; creio num Deus diferente do Deus mau que a Bíblia prega, que castiga e pune 24h/dia. O meu Deus é puro amor e compaixão. Enfim, não vem ao caso minha crença. O que queria dizer é que quando fiquei morrendo de medo, sozinha na rua escura, pedi a Deus que ficasse ao meu lado, e foi quando apareceu meu coleguinha pretinho, peludo, que ficou comigo até que eu embarcasse na lata de sardinha, digo, ônibus.
            Fiquei emocionada, com os olhos cheios de lágrimas. Enxerguei tal situação como um bom presságio, como se fosse a vida me dizendo para ter calma, que esse ano seria repleto de surpresas e bons sentimentos, que por mais que parecesse que as coisas boas estivessem a milhas de distância, elas estão a menos de um palmo da ponta do meu nariz, basta saber enxergar e valorizá-las.
            Obrigada natureza, obrigada meu Deus, obrigada amiguinho pretinho e peludinho que me fez companhia e me pediu carinho esfregando o focinho na minha perna.

            Mais uma vez, sou grata à vida e suas surpresas.