quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Minha Hora

            E lá estava ele. Mais uma vez impassível, sentado em sua poltrona marrom estofada. Pernas cruzadas, sapatos italianos, calça cinza deixando sua meia à mostra. Apoiava o cotovelo direito no braço da poltrona, segurava o livro com a mão esquerda. Na mesa ao lado, uma xícara branca com café quente. Entre um gole e outro, ajeitava os óculos e passava os dedos entre os fios grisalhos de seu cabelo que caía nos olhos.
            Sempre fora um homem introspectivo e indiferente ao resto do mundo. Completamente incapaz de reparar a beleza do pôr do sol na janela de 5 metros bem ao lado.
            Quando casamos, há 25 anos, ele era um menino franzino, sempre com seus livros, imerso em sua mente, que deve ser uma espécie de Jardim Suspenso, já que sempre passou tanto tempo por lá, passeando entre suas belezas ocultas.
            Hoje, do auge de seus 50 anos, ele já não consegue mais conversar sobre banalidades, por mais que se esforce. Seus olhos já não possuem mais brilho, movimentam-se mecanicamente – deve ser algum tipo de sequela do hábito de ler compulsivamente – e mal conseguem seguir as curvas dos meus cachos.
            Passei algum tempo observando-o – umas 3h mais ou menos – e ele sequer desconfiou; não consegue mais sentir a presença de quem quer que seja. Onde está o homem por quem me apaixonei?
            Fechei os olhos, respirei fundo, me apoiei no braço do sofá – deixei a marca de meus dedos no estofado branco – e fui até nosso quarto. Abri o armário. Tantos anos, tantas histórias penduradas naqueles cabides, tantos risos e lágrimas embolorados e felpudos... Melodias distorcidas, tapes acelerados...
            Estiquei o corpo ao máximo e alcancei a mala. Aquela mala marrom com alça, que compramos quando ainda namorávamos, quando viajamos escondidos ao litoral – dois magricelas inconsequentes, com exatos RS143,20 na carteira. Ah, a juventude! Por alguns instantes, acariciei a mala como se fosse o rosto dele quando ainda tinha algum tipo de expressão. Senti meus olhos ficarem marejados. Engoli o nó da garganta, respirei fundo, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e comecei a retirar meus cabides, dobrar peça por peça e colocar com carinho dentro da mala – Era como se eu estivesse tornando concreto o que venho fazendo com meus sentimentos e emoções nos últimos anos, dobrando e guardando com carinho numa mala.



            Fechei as duas dobradiças da mala, sentei na cama e olhei para a foto no meu criado mudo. Nós dois e nossos filhos. Melissa sorrindo com suas sardinhas e cachos ruivos. Lucca com pose de homem, igual ao pai. Ele esboçando um sorriso e eu no meio de todos, sorridente, mas com o olhar melancólico. Passei as pontas dos dedos no vidro, dei um beijo, abri a mala, guardei e fechei de vez, para sempre.
            Saí do quarto e lá estava ele, sentado como quando fui para o quarto. Parei ao seu lado, coloquei a mala no chão, retirei o livro de sua mão, olhei fundo em seus olhos. Segurei seu rosto com as duas mãos e dei um beijo em sua testa.
            - Obrigada. Obrigada pelos nossos filhos. Obrigada pelos sonhos. Obrigada por nós, pelo que fomos e pelo que nos tornamos. Obrigada por ter feito com que eu o amasse tanto a ponto de ter coragem para seguir com minha vida e respeitar teus momentos, tua solidão inata. Eu te amo aqui ou em qualquer outro lugar do mundo e você sabe disso. Cuida bem de você, porque chegou a minha hora, a hora de cuidar aqui de dentro.

            Peguei minha mala e saí. Sim, as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto sem consentimento. Entrei no elevador, desci no térreo, saí pelo portão, coloquei a mala no chão e respirei fundo o ar quente da chuva de fevereiro. Estava livre. Livre para amar, para ser amada, para cuidar de mim mesma, para existir!

Nenhum comentário:

Postar um comentário