E lá estava
ele. Mais uma vez impassível, sentado em sua poltrona marrom estofada. Pernas
cruzadas, sapatos italianos, calça cinza deixando sua meia à mostra. Apoiava o
cotovelo direito no braço da poltrona, segurava o livro com a mão esquerda. Na
mesa ao lado, uma xícara branca com café quente. Entre um gole e outro,
ajeitava os óculos e passava os dedos entre os fios grisalhos de seu cabelo que
caía nos olhos.
Sempre fora
um homem introspectivo e indiferente ao resto do mundo. Completamente incapaz
de reparar a beleza do pôr do sol na janela de 5 metros bem ao lado.
Quando
casamos, há 25 anos, ele era um menino franzino, sempre com seus livros, imerso
em sua mente, que deve ser uma espécie de Jardim Suspenso, já que sempre passou
tanto tempo por lá, passeando entre suas belezas ocultas.
Hoje, do
auge de seus 50 anos, ele já não consegue mais conversar sobre banalidades, por
mais que se esforce. Seus olhos já não possuem mais brilho, movimentam-se
mecanicamente – deve ser algum tipo de sequela do hábito de ler compulsivamente
– e mal conseguem seguir as curvas dos meus cachos.
Passei
algum tempo observando-o – umas 3h mais ou menos – e ele sequer desconfiou; não
consegue mais sentir a presença de quem quer que seja. Onde está o homem por
quem me apaixonei?
Fechei os
olhos, respirei fundo, me apoiei no braço do sofá – deixei a marca de meus
dedos no estofado branco – e fui até nosso quarto. Abri o armário. Tantos anos,
tantas histórias penduradas naqueles cabides, tantos risos e lágrimas
embolorados e felpudos... Melodias distorcidas, tapes acelerados...
Estiquei o
corpo ao máximo e alcancei a mala. Aquela mala marrom com alça, que compramos
quando ainda namorávamos, quando viajamos escondidos ao litoral – dois magricelas
inconsequentes, com exatos RS143,20 na carteira. Ah, a juventude! Por alguns
instantes, acariciei a mala como se fosse o rosto dele quando ainda tinha algum
tipo de expressão. Senti meus olhos ficarem marejados. Engoli o nó da garganta,
respirei fundo, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e comecei a
retirar meus cabides, dobrar peça por peça e colocar com carinho dentro da mala
– Era como se eu estivesse tornando concreto o que venho fazendo com meus
sentimentos e emoções nos últimos anos, dobrando e guardando com carinho numa
mala.
Fechei as duas
dobradiças da mala, sentei na cama e olhei para a foto no meu criado mudo. Nós
dois e nossos filhos. Melissa sorrindo com suas sardinhas e cachos ruivos.
Lucca com pose de homem, igual ao pai. Ele esboçando um sorriso e eu no meio de
todos, sorridente, mas com o olhar melancólico. Passei as pontas dos dedos no
vidro, dei um beijo, abri a mala, guardei e fechei de vez, para sempre.
Saí do
quarto e lá estava ele, sentado como quando fui para o quarto. Parei ao seu
lado, coloquei a mala no chão, retirei o livro de sua mão, olhei fundo em seus
olhos. Segurei seu rosto com as duas mãos e dei um beijo em sua testa.
- Obrigada.
Obrigada pelos nossos filhos. Obrigada pelos sonhos. Obrigada por nós, pelo que
fomos e pelo que nos tornamos. Obrigada por ter feito com que eu o amasse tanto
a ponto de ter coragem para seguir com minha vida e respeitar teus momentos,
tua solidão inata. Eu te amo aqui ou em qualquer outro lugar do mundo e você
sabe disso. Cuida bem de você, porque chegou a minha hora, a hora de cuidar aqui de dentro.
Peguei
minha mala e saí. Sim, as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto sem
consentimento. Entrei no elevador, desci no térreo, saí pelo portão, coloquei a
mala no chão e respirei fundo o ar quente da chuva de fevereiro. Estava livre.
Livre para amar, para ser amada, para cuidar de mim mesma, para existir!
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