domingo, 24 de abril de 2016

TrintaUmMarçoDoisMilQuinze.

De que adianta a blusa vazia, 
A foto empoeirada, 
A música no 'repeat', 
O ícone na barra do smartphone,
A música no som de chamada, 
As lembranças inundando a mente e o coração...
...se

A blusa é vazia;
A música, um arranjo de acordes; 
A foto, bidimensional;
O ícone, quando aberto, cheio de caracteres digitados e codificados;
A chamada, um sinal de algum satélite perdido da órbita terrestre
As lembranças imateriais e distantes?

sexta-feira, 22 de abril de 2016

As Borboletas que Nunca Voam do Estômago

Certa vez, em um filme, ela ouviu algo como “os amores impossíveis são aqueles que nunca morrem”, e foi obrigada a concordar. 

Ela a escolheu. E agora?

A escolheu e nunca poderá tê-la ao alcance de suas mãos. 

Todas as relações dela sempre tiveram uma espécie de prazo de validade, aquele encantamento e nervosismo diante do encontro do outro nunca duraram mais de seis meses, e cá está ela - há mais de um ano - sentindo-se como uma adolescente a cada vez que sabe que irá encontrar a dona daqueles olhos verdes que falam tudo o que a boca cala; quando sabe que poderá jogar-se em seus braços, sentir a pele macia de seu rosto, sua respiração, puxar seus cabelos, ser presa e sofrer um ataque feroz de cócegas, morder o queixo dela só para ouvi-la gritar e fazer careta.

Os monstros eram compatíveis. As neuroses também. Os toques se encaixavam perfeitamente (e permanentemente). A compreensão fez-se uma constante. O respeito de tocar com carinho o mundo do outro sempre foi a base dessa relação meio torta e destrambelhada, que sempre as presenteia com pacotes coloridos, perfumados e repletos de bons momentos, de instantes que revigoram a alma e dão sentido até mesmo às dores, afinal, para que o encaixe fosse tão perfeito, as almas foram lapidadas, coisa que compete às adversidades da vida.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

As notas da Caixa de Pandora

Uma sequência intensa de notas em tons menores vinha da sala de estar, transbordando sentimentos que eram quase palpáveis; era possível senti-los escorrendo pelo corpo, como chuva forte caindo do céu em pingos pesados que rapidamente molham o corpo todo.
Lá estava ela... olhos fechados, janela aberta, sentindo o vento gelado de Junho acariciar sua face enquanto, como mágica, seus dedos conversavam com as teclas do piano, fazendo seus sentimentos ecoarem pela casa, reverberarem pelos cantos, penetrarem os estofados.
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A princípio tocava com delicadeza, com a timidez de alguém que começa a dizer a um estranho como se sente, o que já viveu. Aos poucos, a intimidade com o piano foi surgindo, as notas ficando mais altas e fortes. Sentimentos mais densos. Seu corpo todo movimentava-se na melodia de Beethoven's Silence, tocada com toda a melancolia que ela guardava dentro de si. Durante as pausas, prendia a respiração, retesando seu corpo. Quando voltava a tocar, sentia as lágrimas pesadas caírem de seus olhos, escorregarem por seu rosto e caírem nas teclas de seu confidente, misturando-se às pontas de seus dedos longos e frios, com unhas roídas.
Ao sentir um ínfimo raio de Sol aparecer e tocar sua pele, calmamente levantou-se, fechou o piano, respirou fundo e caminhou em direção ao quarto. Sua tristeza, suas confissões, suas notas melancólicas, suas dores pertencem somente à madrugada; sua Caixa de Pandora, que durante o dia deve permanecer fechada para que sua máscara lhe caiba e a vida lhe pareça menos amarga.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Blasé

            Naquela sala à meia luz, sentada no tapete, ao lado do cinzeiro de prata e do copo com whisky, se perdeu  nas curvas sinuosas da fumaça que tocava  seu rosto e irritava os olhos. A regravação de Feeling Good, por Avicii, ecoava por todo o ambiente, reverberava os quatro cantos de sua mente – sim, naquele momento ela se sentiu com a mente totalmente quadrada, hermeticamente fechada, sem saída, sem luz, sem ar fresco; com o mesmo cheiro de whisky, cigarro e casa fechada que estava em sua sala.

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        Flashes em câmera lenta, cenas movendo-se em sua mente na mesma velocidade e intensidade da voz pastosa do vocalista. Imagens esvanecidas, com os tons das fotografias dos anos 70. Sorrisos, abraços, brincadeiras, lágrimas, brigas, reconciliações, esperanças chocando-se com a realidade de algo doentio que há poucos dias ainda era chamado de presente.

            Retornou à realidade, pegou o copo e tomou os três dedos de whisky que encharcaram todas essas lembranças, borraram todas as imagens, deixando algo confuso, atemporal. Recolheu calmamente - com as pontas de seus dedos finos, compridos e gelados, com esmalte descascando - do tapete a bituca e jogou dentro do cinzeiro, acendeu outro cigarro, andou até a janela e pode ver os carros indo e vindo na Avenida Paulista; borrões vermelhos e brancos, na verdade, porque a miopia e o álcool levaram embora a nitidez das imagens – e dos sentimentos, também.

domingo, 17 de abril de 2016

Crônicas do Cotidiano XIV - E o amor, vó?



-Vó, a senhora acredita em amor perfeito, mesmo que esse "perfeito" seja extremamente subjetivo?


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-Ih, minha filha, já acreditei, viu? Aquela fantasia linda, de que alguém que se encaixe nas nossas expectativas, tenha as neuroses compatíveis com as nossas, nos ame incondicionalmente e tenha disposição de cuidar das feridas no nosso coração, assim, de graça, é uma invenção linda da nossa alma. O que você pode dar a sorte de encontrar na vida, e que chegará mais perto disso, será alguém que irá te oferecer a amizade mais pura possível. Fora isso, são todas idealizações nossas. Nunca haverá uma pessoa aberta a uma relação dessas, seja por quais motivos forem. Pode ser tudo perfeito, mas sempre haverá "aquele" porém, que, sendo pessoal ou consequência da vida, será como o vento, lentamente destruindo o seu castelinho de areia, construído, algumas vezes, a quatro mãos, repleto de ilusões e sentimentos em cada grão. Por isso, filha, nunca entregue seu coração em uma bandeja, nunca faça de outro coração o centro de sua vida, a razão dos seus sorrisos. O peso das suas lágrimas pode, a qualquer momento, encharcar seu coração, fazê-lo desabar no chão, na realidade, e, vá por mim, isso dói imensamente.

Cuida desse diamantezinho que você carrega aí dentro e procure não deixar que a vida o lapide demais, ele pode acabar virando um pedacinho ínfimo de algo que é tão grande e belo.