sexta-feira, 2 de março de 2018

Crônicas do Cotidiano XXII - Sobre a boca que dorme.

     A boca dormente, as palavras tentando encontrar seus lugares nas frases, os sentimentos borbulhando e digladiando-se, tentando em vão sair de dentro do peito.

     Gostaria que cada vez que pressiono as teclas, elas pudessem fazer com que essa salada de sentimentos e pensamentos – que, em analogia, seria como uma salada com alface, cebola, feijão, macarrão, molho de mostarda, leite condensado, uva passa, alho, queijo ralado, granulado de chocolate, rúcula, maionese, couve, Nutella, banana e manteiga - pudesse sair aqui de dentro e me dar pelo menos um pouquinho de paz e sossego no coração e na cabeça. 

     Hoje, na aula, ouvi uma frase que fez muito sentido; algo como "substituir a culpa pela responsabilidade traz a aceitação e consequentemente o alívio de se livrar da culpa". Puta que pariu! E quando não consigo encontrar onde está a minha responsabilidade na desordem? E quando a desordem é filha de um outro que simplesmente a abortou no meio da rua, com placenta e tudo, e foi embora, deixando ecoar no vento que eu sou dramática por me impressionar e incomodar com a cena e me recolher dentro da minha ostra? 

     Aí vem a indignação diante da qualificação atribuída pelo outro, a angústia de gritar para que um surdo ouça, acenar para um cego, tentar explicar a quem não tem disposição de ouvir nem compreender. É como se tentasse colocar meu pé 39 em um sapato 35. Exasperante! Não importa o quanto eu grite que dói e não cabe, sempre é drama e manipulação. Quando na verdade, só dói, porque meu pé não cabe naquele sapato e não porque quero outro mais caro ou porque minhas unhas ficarão borradas.



     O grito de dor é sempre um pedido de ajuda, e é tenebroso quando além de não ser escutado, é classificado como algo supérfluo e fútil ou pior: como manipulação. Mas creio que eu tenha criado o terreno para que o grito seja visto dessa forma, pois aprendi a me calar quando algo dói, incomoda, sai de lugar, cai no dedinho do pé. Aprendi a guardar dentro da ostra, porque as vezes nas quais tentei compartilhar, sempre saiu daqui como o compartilhamento de uma dor, mas chegou como frescura e atitudes de gente mimada; o maldito telefone sem fio, feito com caixinha vazia de Yakult e barbante, que deixa informações perdidas no meio do caminho e distorce as palavras. Me vi tendo que optar por tentar desfazer todo e qualquer mal-entendido causado pelas falhas na comunicação, ou simplesmente me calar, e foi pelo que optei, como quando alguém em surto psicótico é dopado, ao invés de ter a oportunidade de falar sobre seus delírios a fim de que sejam compreendidos e contextualizados; tal qual a do louco, minha credibilidade, minhas falas, meus porquês sempre foram anulados. Talvez, essa mania de esmiuçar o que se passa aqui dentro, saia daqui como uma maneira de manter por perto quem me importa, de explicar o que se passa e dizer que nem sempre ajo por maldade ou qualquer outra motivação que possa machucar, mas chega como manipulação, como uma espécie de preparação de um terreno para que um grande golpe seja bem sucedido; e não importa o quanto eu tente, sempre é em vão, sempre os significados das falas se perdem no meio do caminho. 


Talvez seja hora de calar.

A boca dorme e a cabeça acorda.


A boca dorme e o coração chora.


A boca dorme e o ser - existir - dói.


A boca dorme.

Talvez seja hora de calar.

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