domingo, 29 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano III - Vento frio. Tempo vil.

            Chove lá fora. Sentada no sofá da sala, posso observar as plantas mais frágeis balançando com a força com que os pingos de água caem do céu. Os vidros estão ligeiramente embaçados, com algumas gotas escorrendo e formando linhas sinuosas e disformes – como a melancolia que escorre por minhas veias em dias como hoje -  até desaparecerem. Ao meu lado, uma caneca cheia de café forte, quente e sem açúcar. Do outro lado, minha cadela dormindo e esfregando na minha cara toda a ausência de preocupações de sua vida canina.
            O céu é branco como o infinito; não tem começo, meio, fim, perspectiva, nem sombra. Talvez tenha luz. Talvez.
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Na vida real não é possível aplicar filtros às cenas que nos desagradam, não tem aquela barrinha mágica do Instagram, cheia de filtros para todos os tipos de humor e estados de espírito. É preciso encarar a realidade tal qual se apresenta, olhar no espelho e enxergar os espinhos escondidos que arranham a alma. A vida não nos permite, como o aplicativo, poetizar imediatamente as angústias e incômodos.
           Cenas da infância, amores distantes, impossibilidades convenientes, possibilidades incômodas, memórias desfocadas, sentimentos emaranhados, cheiro de chuva. Vento frio. Tempo vil.

         Acendo um cigarro após três tentativas de fazer com que o isqueiro funcione. Solto a fumaça devagar, tentando enxergar algum tipo de padrão em sua forma, assim como tento compreender a caixinha de sentimentos que é aberta sempre que o céu está nublado e chuvoso. Talvez a chuva seja análoga às lágrimas que não escoam de dentro de mim quando me vejo deprimida diante de um dia cinzento.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano II - É preciso Poder para Sentir?

            Ainda não sei como consegui, de onde tirei forças para ir à aula hoje pela manhã. Foram as 2h mais longas da minha vida até agora. As palavras da professora coavam num vácuo dentro da minha cabeça, eram como ímãs colocados numa tela em branco feita de pano envolta numa belíssima moldura do sono mais genuíno.

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            A turma foi liberada no intervalo. Quase ajoelhei para agradecer à professora mais sorridente com quem já tive aula às 8h da madrugada. Sim, madrugada. Caminhei até o metrô conversando com duas amigas sobre algo que não me lembro, minha única recordação é uma delas contando que tinha medo de passar embaixo de árvores porque quando era pequena a mãe disse a ela que caíam uns bichos, tipo umas lagartas, que entravam pelo umbigo e se alojavam dentro das crianças. Confesso que mesmo com 22 anos fiquei levemente aterrorizada com a ideia de ter uma lagarta invadindo meu umbigo e fazendo morada dentro de mim. Já tenho tantos monstrinhos aqui...
            Quanto mais me aproximava de casa, mais me sentia tomada por aquela sensação de não ser mais senhora de mim mesma. Só conseguia pensar na minha cama, meu travesseiro macio, meu cobertor quentinho. Cheguei, despachei a bolsa e o fone em qualquer canto da casa e me entreguei aos encantos da minha cama, me deixei seduzir mesmo sabendo que teria de acordar em no máximo 1h porque tinha compromisso.
            Pouco antes de pegar no sono, totalmente tomada por aquela sensação indescritível de quando estamos a poucos instantes de fecharmos a porta da carruagem que nos levará aos braços de Morfeu, me peguei pensando sobre os prazeres da vida. Como boa aquariana, lógico que meus pensamentos não cessaram. Em questão de minutos, cheguei à conclusão de que todos, todos os prazeres da vida são imateriais, são aqueles segundos ou minutos de clímax, seja antes de dormir, depois da primeira garfada daquela comida maravilhosa, durante a primeira tragada no cigarro após horas de abstinência. O prazer acontece dentro de nós mesmos, é imediato e indescritível – ou alguém já conseguiu definir com precisão universal o que é o prazer, aquele depois do cafezinho, do cochilo ou do abraço, como conseguiram descrever o medo?
            Quando compramos uma roupa nova, por exemplo, o real prazer não é comprar, não é vestir, não é exibir a nova aquisição. O real prazer é a sensação, ou melhor, as sensações que temos ao vestirmos algo que nos deixará mais bonitas, confiantes, especiais. O sorriso no rosto, a auto aprovação, a autoconfiança. O prazer em comprar uma roupa nova é poder sair às ruas sentindo-se segura, com a certeza de estar bonita para si mesma, mesmo sabendo que todos temos gostos diferentes e que provavelmente alguém irá odiar o novo look. Mesmo o prazer dos exibicionistas, creio que esteja atrelado a uma imensa baixa-estima, superada momentaneamente enquanto atrai olhares e elogios, atenção no geral, momentos em que sentem-se especiais, confiantes, únicos, de bem consigo mesmos.
            Creio que a famosa frase feita “o prazer da vida está nas pequenas coisas” veio dessa sensação ainda sem nome ou classificação, que dura apenas alguns instantes após consumado o ato que satisfaz o desejo, aquele êxtase, como se estivéssemos no topo da montanha-russa, prestes a despencarmos de sabe-se lá quantos metros, termos a tão adorada adrenalina liberada, sentirmos o vento no rosto, a incerteza, a dúvida “é medo ou prazer?” para depois chegarmos à conclusão “medo também é prazer.”
            O que quero colocar, deixar para reflexão, é o seguinte: O prazer está atrelado ao poder? É realmente preciso poder para sentir?
Partindo de que o poder é como uma viga firme de madeira nobre, que garante estabilidade, e o prazer é uma sensação efêmera, a linha que o separa do poder é realmente tão tênue assim, ou é mais cômodo não enxergar o abismo que há entre prazer e poder, assim não se faz necessário assumir que somos todos iguais e sentimos os mesmos prazeres diante de necessidades básicas, mudando apenas a forma, os instrumentos utilizados para que seja alcançado o prazer? Lembrando que quanto maior o poder, mais sofisticados e caros, são os instrumentos, e consequentemente são tidos como melhores, sendo que nem sempre o mais caro e sofisticado é, de fato, o melhor.

             

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano I - Chuva, risadas e eco-bitucas

       Como todos os dias, terça-feira desci para fumar com uma amiga. Depois de xingar por não conseguir compreender o porquê de ter mais ou menos umas 20 catracas na faculdade e apenas 5 disponíveis para uso, saímos e ficamos em pé conversando ao lado daquele objeto amassado e fedorento que chamam de cinzeiro e que a faculdade gentilmente disponibiliza para os alunos. Enquanto conversávamos, eu ia mudando de posição de acordo com a direção que o vento escolhia para acariciar a face de quem estivesse por lá, já que minha amiga não fuma e mesmo que fumasse, não é merecedora da divina fragrância do produto fumígeno com mais de 4.700 substâncias tóxicas. 

            Entre 3 ou 4 assuntos sendo conversados simultaneamente, decidimos sentar em uma espécie de bancos que fizeram com páletes e colocaram meia dúzia de plantas, num estilo eco-minimalista - se é que existe esse estilo – que me soa como uma tentativa de levar algo sustentável e ecológico ao edifício de 13 andares com janelas de vidro espelhado sustentado por vigas de algum tipo de metal. Os vãos das madeiras do chão são decorados por bitucas de cigarros, das mais variadas, filtro amarelo, branco, preto, vermelho, para todos os gostos! Fiquei me perguntando o porquê de terem tantas lindas bitucas decorando o espaço “eco”, sendo que a menos de um metro havia um daqueles cinzeiros lindos, com água empoçada.
            Conversamos sobre nossas angústias (sempre tão parecidas que se combinássemos, não seríamos capazes de viver situações tão iguais) e sobre minhas famosas “bolas fora”, coisas que burlam o filtro e saem da minha boca por pura impulsividade, me colocando em saias justas que ficam praticamente saias a vácuo, porque eu não percebo. No fim das contas, acabamos dando risada de nossos próprios problemas, e seguindo em frente, sabendo que podemos contar uma com a outra. Meio a indecisões, ansiedade e adoráveis bitucas no chão, resolvemos eternizar aquele momento em uma fotografia. Após umas 5 ou 6 tentativas, a chuva estava dando o ar de sua graça e ambas tínhamos tarefas a serem cumpridas, finalmente conseguimos uma foto que não fosse ingrata.

            A vida não é e nunca será perfeita, livre de empecilhos, de “pedras no caminho”, mas são esses “pequenos” momentos que fazem com que ela seja tão mágica e sedutora. Ter uma amiga dessas “ponta firme” que passa mal de rir junto comigo, um cigarro na bolsa, levantar e perceber que estava com a calça úmida e ter dado várias risadas daquelas tão gostosas são coisas impagáveis! Sim, estava chovendo, cheirando a cigarro e chão de cimento molhado, ventando frio, os cabelos ficando arrepiados por conta das gotas d’água e do vento, mas eu me senti feliz e plena, dona de mim e da minha vida, sabendo enxergar, viver e valorizar as coisas boas mesmo de situações repletas de motivos para me fazer ficar com cara de bunda o resto do dia.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Quero...

- Oi
- Oi, tudo bem?
- Tudo... Fazendo?
- Em casa, vendo tv, e você?
- Aki na frente, na sua porta...

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            Nesse instante, todos os móveis decidem entreporem-se aos meus dedos dos pés, as chaves se escondem e dizem ironicamente “cadêêêê?”, o cerebelo perde o controle da coordenação motora, o coração atropela a sincronia entre sístoles e diástoles. Saliva? O que é? De onde vem? Para que serve? Trocar a roupa e arrumar o cabelo são detalhes ínfimos.
            Nada disso importa! Tudo o que desejo é poder te ver, te chamar pelos apelidinhos escrotinhos, me jogar nos teus braços e te abraçar apertado, te olhar nos olhos, fazer carinho no teu rosto, falar merda pra te ver sorrir e balançar a cabeça pros lados, me chamando de tonta, me segurando firme e fazendo cócegas.
            Quero morar no teu colo, criar raízes ao teu lado, te ver voar alto, abrir essas asas grandes e macias e te ver vivendo toda a magia de ser livre. Quero teus sorrisos e tuas lágrimas, teu sono e tua vigília vendo documentários sobre parasitologia ou paranormalidade às 03:00 da manhã. Quero te surpreender com um almoço chique de macarrão com salsicha, ou uma belíssima caixa de quindins gigantes. Quero ficar ao teu lado vendo tv ou vídeos idiotas na internet, bagunçar teu cabelo e sair correndo das tuas pequenas havaianas 39. Quero ver tua cara de prazer ao conseguir me pegar e prender no teu colo, com a havaianas em mãos, rindo do meu desespero e me chamando de “bundona”. Quero ver teu desespero quando minha cadela decidir te lamber loucamente, subir no teu colo e encher tua roupa de pelos. Quero acordar ao teu lado, te ver cumprir todo o ritual matinal enquanto cochilo e me arrumo em espetaculares 15 minutos.
            Quero poder estar por perto quando teu coração estiver apertado dentro do peito, te ver imersa no aparente silêncio e frieza, mas quero estar ali caso você caia, pra te estender a mão, levantar e colocar no meu colo, poder dizer que vai ficar tudo bem, que você não está só, que eu sempre estarei ali pra te fazer rir de alguma besteira, te irritar, te morder ou simplesmente te ouvir... sem espanto, sem julgamento, sem desdém nem pena; apenas ouvir.

            Enquanto não posso, me entrego de braços abertos à certeza de morar em teu coração e pensamentos, de saber que mesmo longe estou aí dentro da mesma forma que você está aqui dentro. Estou aqui. Mas estou aí. E tenho você aqui também.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Confissões de uma péssima inquilina

Alguns dias, sou barulhenta demais. Outros, meu silêncio coloca em dúvida minha existência.
Não cumprimento vizinhos, simplesmente abaixo a cabeça e os atravesso como se fossem seres etéreos. Vez ou outra, sento na janela e sorrio para Deus, o mundo e mais um, distribuindo flores a quem se dispuser a simplesmente me devolver um sorriso, mesmo que apenas com o olhar.

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Ha dias em que a casa está colorida, cheirosa, limpa e aconchegante, pronta para acolher com amor e carinho a todos que desejarem entrar, passar pela porta florida. Há outros em que o cheiro de mofo e a escuridão embriagam até a mim.
Nem sempre cuido das rachaduras nos muros do quintal. Em algumas manhãs, acordo desejando substituí-lo por uma linda cerquinha branca que proteja meus girassois (proteger de quê, exatamente, não sei. Vai ver, é aquele medo humano de ter sua “propriedade” saqueada, mesmo que tal propriedade seja alugada, emprestada, cedida. O que tem lá é meu e vou proteger, mesmo que seja com uma cerquinha branca e baixa, afinal, para algo ter significado real, deve, primeiro, ter significação mental e é o tamanho desta que, ao ser transposto à realidade, acalma a ansiedade diante da possibilidade de ter os desejos contrariados, no caso, ter meus girassois roubados por algum tolo apaixonado que deseje agradar a quem ama – o que, num dia bom, seria totalmente perdoável).
Nunca pago em dia as parcelas do aluguel. É como se o atraso fosse a regra. Nunca gostei de relógio, de tempo. O tic-tac sempre me deixou exasperada. É como se o barulho do relógio fosse o som da vida moendo meus sonhos lentamente... tic-tac... lá sei a vai a inocência... tic-tac... adeus pessoas que amo... tic-tac... mais uma porta batida sem dó... tic-tac, tic-tac, tic-tac! Tempo, para mim, nunca foi cronológico, sempre foi funcional. Uma hora pode ter a duração de um ano, só depende do fato que ela antecede. Dez anos podem passar num piscar de olhos e só nos darmos conta ao encontrarmos aqueles fios grisalhos que não habitavam o couro cabeludo há tão pouco tempo.
Não espere encontrar um ser sorridente e arrumado ao tocar a campainha. Contente-se com meu pijama de mendigo, meus cabelos engruvinhados em volta de algum elástico velho, meias largas e cara feia. Odeio som de campainha. Acho uma imensa invasão. O fulano aparece quando dá na veneta, toca aquela merda até que ela se torne uma maneira de coerção e me faça, finalmente, assumir que estou em casa. E o meu direito de simplesmente não querer interagir? E a minha vontade de permanecer entregue às entranhas do meu mundo? Vão para a casa do chapéu, não é mesmo? O importante é estar sempre bem, sempre dizer o que quer ser escutado e absorvido, estar sempre disposta e sorridente, ser uma excepcional anfitriã!
Em suma, não venha à minha casa se não for convidado. Vou bater a porta na tua cara.
Não queira os meus girassois a menos que eu lhe ofereça. Eles são meus!
Não espere que eu siga as regras universais, que cumpra prazos e horários. Não vou abaixar a música às 22h porque meu tempo é diferente do teu.
Não idealize uma pessoa sensata caso me veja sentada na janela olhando para cima e cantarolando alguma canção sentimental.
Não me queira como inquilina se não pretende ser um proprietário com imensa capacidade de compreensão, delicadeza, cuidado, carinho e acima de tudo, respeito.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

E agora? Nasci humana...

Sim, meus queridos e queridas, o ser humano é falho.
E, ao contrário do que se diz por aí, ser falho não é motivo de vergonha, não é algo que deva ser escondido, trancafiado a sete chaves naquele baú no fundo da alma, escondido de todo o resto da humanidade, coberto com mil adereços que agradem ao coletivo, que caiba dentro das caixas impostas pela “normalidade” higienista do começo do século passado. Não há porque temer ter as falhas descobertas. Elas que nos fazem humanos, elas que nos constituem enquanto sujeitos cientes de si mesmos, elas que grifam nossa individualidade, elas que fazem com que sejamos encantadores àqueles que nos veem sem julgamento no olhar.


            Muitas vezes, devido ao hábito de ter o indicador de outrem colado à face, antecipando palavras rudes, acabamos soltando espinhos antes mesmo de conhecer o terreno em que pisamos. Agir assim é ser falho? Sim, é. É feio? Não, não é. Aos olhos de alguém com o coração aberto, pronto a acolher tais falhas, “defeitos de fabricação”, essas falhas trazem à tona abraços, palavras aconchegantes, olhares doces e repletos de compreensão, ouvidos prontos a acolher.
            Mas uma hora a gente aprende. Uma hora “cai a ficha” de que todos os seres humanos são diferentes, e por mais que durante a vida tenhamos encontrado mais gente disposta a nos puxar para baixo, há, sim, pessoas dispostas a simplesmente nos acolher, sem pronunciar um “a”, sequer. Apenas nos colocar dentro de um abraço com todas as nossas peculiaridades, limitações, dificuldades e falhas.


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

(Vi)ver

Sinto uma vontade imensa de sair estampando essa frase nas testas das pessoas: Não estamos quebrados, apenas envergados, e podemos reaprender a amar!

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Podemos reaprender a respeitarmos uns aos outros, podemos entender o ponto de vista do outro sem agredi-lo, podemos não fechar os olhos à dor alheia, podemos não pisar naquela flor que nasceu nas chagas do cimento, podemos abraçar com o coração, podemos nos emocionar, podemos criar relações sólidas com as pessoas, podemos desejar um bom dia ao motorista do ônibus...
Podemos enxergar através das gotas no vidro da janela em um dia chuvoso e percebermos que a vida continua linda, com infinitas possibilidades todos os dias, repleta de cores e aromas agradáveis, mãe de toda essa gente que passa despercebida todos os dias no corre-corre da rotina.
A vida continua de braços abertos a todos nós, apenas esperando que saiamos de nossas poltronas estofadas cuidadosamente alojadas em nossas zonas de conforto e a abracemos com toda a garra, com toda a força, com a mesma ânsia de viver com a qual deixamos os úteros de nossas mães e num grito de vitória fomos recebidos nesse mundão tão diversamente belo, com características suficientes para agradar a todos os tipos de gostos e olhares, basta mudarmos um pouquinho o ângulo para (vi)vermos...


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Quero...

Quero brilho no olhar, pés descalços e lama.
Quero amém a cada conquista.
Quero paçoca, brigadeiro e bolinho-de-chuva.
Quero barreiras transpostas.
Quero canetas coloridas no estojo com glitter.
Quero independência com cheiro de café fresco.
Quero pijama de ursinho, pipoca e comédia romântica.




Quero ser a mulher-menina que muda a cadeira de lugar ao fim de cada pôr-do-Sol para ver vários ao dia; que admira e sabe como chegar à palmeira onde canta o sabiá; que não faz todo dia tudo sempre igual; que não vai embora pra Pasárgada; que trás no olhar os vastos céus e é dona de todos os ouros e clarões; que é bela como um sonho de pedra; que sabe que o amor é eterno só enquanto dura; que segue o amor, ainda que por caminhos agrestes e escarpados; que fica com a pureza da resposta das crianças; que perdoa as feias porque sabe que beleza é fundamental; que ama o primeiro amor como ama o segundo, sem chorar a morte do primeiro nem temer o segundo; que é sapateiro, diabo e anjo...

...que nasceu, cresce e morrerá amando como ama o amor.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Momentum

Conforme ela seguia as curvas da estrada rodeada por um verde indescritível, eu não conseguia avaliar com precisão a paz e alegria que se instalaram dentro de mim.

            - Hey, onde você está? – Disse, sorrindo e colocando a mão em minha perna, apertando meu joelho.
            - Estava longe, meu bem. Muito longe. – Respondi, colocando minha mão sobre a dela e entrelaçando nossos dedos.



            - Ei, dorminhoca, chegamos.

Abri os olhos e me deparei com seu sorriso ao meu lado esquerdo, seus dedos entre meu cabelo e uma paisagem deslumbrante ao lado direito; areia quase branca, fofa, água transparente, azulada, cheiro de mar.
Já devidamente acomodadas, ela esticou a esteira ao meu lado e deitou-se. Nos olhamos e apenas sorrimos. Fechei os olhos, suspirei e me entreguei aos raios do Sol tomando cada pedacinho do meu corpo.
Tentei entender como era possível alguém ser dona de uma simplicidade tão sofisticada, desprovida de maiores luxos e frescuras (daquelas que nos enchem os olhos) e ainda assim ser tão absurdamente envolvente e encantadora. Ela era simplesmente ela, e isso a fazia tão encantadora, tão simplesmente encantadora.
Ela era como aquela orquídea na sala. Sozinha, sem enfeites, sem mais flores, dentro de um vaso transparente. Enfeita, perfuma, colore, encanta, embriaga.
Baudelaire sempre foi um de meus poetas preferidos. Um dos que me roubam o coração. Suas palavras sempre vieram como flechas. E em um de seus escritos, ele diz:

É preciso que te embriagues sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
[...]
Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.

            Ela me deixava completamente embriagada. De poesia e de virtude, de doçura e voracidade, de inteligência e simplicidade, de instinto e vulgaridade.