sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano II - É preciso Poder para Sentir?

            Ainda não sei como consegui, de onde tirei forças para ir à aula hoje pela manhã. Foram as 2h mais longas da minha vida até agora. As palavras da professora coavam num vácuo dentro da minha cabeça, eram como ímãs colocados numa tela em branco feita de pano envolta numa belíssima moldura do sono mais genuíno.

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            A turma foi liberada no intervalo. Quase ajoelhei para agradecer à professora mais sorridente com quem já tive aula às 8h da madrugada. Sim, madrugada. Caminhei até o metrô conversando com duas amigas sobre algo que não me lembro, minha única recordação é uma delas contando que tinha medo de passar embaixo de árvores porque quando era pequena a mãe disse a ela que caíam uns bichos, tipo umas lagartas, que entravam pelo umbigo e se alojavam dentro das crianças. Confesso que mesmo com 22 anos fiquei levemente aterrorizada com a ideia de ter uma lagarta invadindo meu umbigo e fazendo morada dentro de mim. Já tenho tantos monstrinhos aqui...
            Quanto mais me aproximava de casa, mais me sentia tomada por aquela sensação de não ser mais senhora de mim mesma. Só conseguia pensar na minha cama, meu travesseiro macio, meu cobertor quentinho. Cheguei, despachei a bolsa e o fone em qualquer canto da casa e me entreguei aos encantos da minha cama, me deixei seduzir mesmo sabendo que teria de acordar em no máximo 1h porque tinha compromisso.
            Pouco antes de pegar no sono, totalmente tomada por aquela sensação indescritível de quando estamos a poucos instantes de fecharmos a porta da carruagem que nos levará aos braços de Morfeu, me peguei pensando sobre os prazeres da vida. Como boa aquariana, lógico que meus pensamentos não cessaram. Em questão de minutos, cheguei à conclusão de que todos, todos os prazeres da vida são imateriais, são aqueles segundos ou minutos de clímax, seja antes de dormir, depois da primeira garfada daquela comida maravilhosa, durante a primeira tragada no cigarro após horas de abstinência. O prazer acontece dentro de nós mesmos, é imediato e indescritível – ou alguém já conseguiu definir com precisão universal o que é o prazer, aquele depois do cafezinho, do cochilo ou do abraço, como conseguiram descrever o medo?
            Quando compramos uma roupa nova, por exemplo, o real prazer não é comprar, não é vestir, não é exibir a nova aquisição. O real prazer é a sensação, ou melhor, as sensações que temos ao vestirmos algo que nos deixará mais bonitas, confiantes, especiais. O sorriso no rosto, a auto aprovação, a autoconfiança. O prazer em comprar uma roupa nova é poder sair às ruas sentindo-se segura, com a certeza de estar bonita para si mesma, mesmo sabendo que todos temos gostos diferentes e que provavelmente alguém irá odiar o novo look. Mesmo o prazer dos exibicionistas, creio que esteja atrelado a uma imensa baixa-estima, superada momentaneamente enquanto atrai olhares e elogios, atenção no geral, momentos em que sentem-se especiais, confiantes, únicos, de bem consigo mesmos.
            Creio que a famosa frase feita “o prazer da vida está nas pequenas coisas” veio dessa sensação ainda sem nome ou classificação, que dura apenas alguns instantes após consumado o ato que satisfaz o desejo, aquele êxtase, como se estivéssemos no topo da montanha-russa, prestes a despencarmos de sabe-se lá quantos metros, termos a tão adorada adrenalina liberada, sentirmos o vento no rosto, a incerteza, a dúvida “é medo ou prazer?” para depois chegarmos à conclusão “medo também é prazer.”
            O que quero colocar, deixar para reflexão, é o seguinte: O prazer está atrelado ao poder? É realmente preciso poder para sentir?
Partindo de que o poder é como uma viga firme de madeira nobre, que garante estabilidade, e o prazer é uma sensação efêmera, a linha que o separa do poder é realmente tão tênue assim, ou é mais cômodo não enxergar o abismo que há entre prazer e poder, assim não se faz necessário assumir que somos todos iguais e sentimos os mesmos prazeres diante de necessidades básicas, mudando apenas a forma, os instrumentos utilizados para que seja alcançado o prazer? Lembrando que quanto maior o poder, mais sofisticados e caros, são os instrumentos, e consequentemente são tidos como melhores, sendo que nem sempre o mais caro e sofisticado é, de fato, o melhor.

             

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