terça-feira, 8 de novembro de 2016

Crônicas do Cotidiano XVII - Massacre

Para tudo, uma dieta, um preconceito – ou devo dizer opinião? -, uma cartilha comportamental, uma ofensinha, uma olhada torta, uma piadinha de escárnio. Parece que quanto mais a espécie “evolui”, mais retorna à selvageria. Mãe pegando faca para filha que, numa brincadeira, diz ser homossexual. Funcionários CLT aclamando governo neoliberal. Estudantes tendo que ocupar suas escolas para terem garantido o direito ao ensino. Abaixo assinados pedindo o fim da morte de animais em testes de produtos de beleza. Carros estacionados em vagas para deficientes. Taxas altíssimas de suicídio. O dólar alto choca mais do que famílias sem comida na mesa. Mulheres hostilizadas e mortas a cada minuto, de formas inimaginavelmente violenta. Crianças e adolescentes mortos pelo crime vistos como lixo que saiu do meio do caminho. Transexuais apedrejadas e mortas, porque na sociedade, “viado não tem vez”. Polícia militar cegando e aleijando cidadãs e cidadãos deliberadamente – e sendo elogiada pelos (de)feitos.

Meio a uma verdadeira diarreia de falsos moralismos, vidas vão se perdendo, dignidade vai sendo dissolvida pelo ácido da engrenagem capitalista, ter opinião virou sinônimo de manifestar descaradamente os tipos mais nocivos – e nojentos – de preconceito.

Rivotril, Sertralina, Fluoxetina, Dizepam, Bromazepam, as balinhas mágicas para auxiliar no controle às dores da alma que não podem ser sanadas, porque fazer terapia – e se permitir simplesmente sentir - AINDA é coisa de louco e descer de cima do muro é um absurdo, girar no sentido contrário é massacrante demais – falar mal de quem o faz e usufruir dos benefícios da coragem destes ainda é mais fácil. Isso sem mencionar a famigerada Ritalina, a droga para “adultificar” as crianças, a droga do bom comportamento, da submissão, da roupa limpa, do silêncio e ordem em casa, da anestesia da falta que a família faz; depois de tanta luta para que a infância fosse compreendida como uma fase do desenvolvimento humano, junto ao capitalismo, vem a necessidade de ter mini adultos em casa, que não demandem tempo nem paciência, pois o tempo urge e é preciso “correr atrás”, porque no futuro, os pequenos, já crescidos, agradecerão a qualidade – financeira -  de vida que lhes foi proporcionada, mesmo que para isso tivessem a infância massacrada.

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Os sentimentos só são belos nos posts no Facebook, nas músicas e nos filmes, porque na vida real, o que conta é a capacidade de ser indiferente, obediente e disforme – para poder assumir a forma que for mais conveniente e trouxer mais lucro.

Na selva de concreto, cada vez há menos lugar para aquilo que nos torna humanos. Aquela máxima de Nietzsche “torna-te quem tu és”, foi substituída por “torna-te quem for te dar maior lucro e poder”, o que é imensamente triste, porque forma uma sociedade de mentira, pré-fabricada, que não aceita o diferente, não lida com emoções nem sentimentos, ignora as subjetividades. O ser humano conseguiu criar uma sociedade que agride a si mesmo, infelizmente. Foram criados conceitos universais e cristalizados de certo e errado, fazendo com que todos entrassem numa briga insana e eterna para serem “a pessoa certa, no local e hora certos, para a função certa”. Não ser a pessoa “certa”, que está no local e hora “certos” não é errado! É justamente isso que nos faz humanos!

Não sinta - racionalize. Não pense - reproduza. Não aja – obedeça.



segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Sobre ser responsável pelo que cativou

18:30. Céu nublado, vento frio, forte e uma chuva que ameaçava engrossar e desistia – assim como ela, sempre que se sentia pressionada, fosse pela sociedade como um todo ou por suas próprias paranoias cuidadosamente criadas e cuidadas.

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- Oi – atendeu o telefone com um sorriso terno, sentada no banheiro, encarando a parede preta com a placa “Sorria, você está sendo filmado!” - cujo nome, naquele momento, deveria ser "Sorria, pois um dos maiores motivos do teu riso acaba de chegar!"
Do outro lado, aquela voz. Aquela... a que sempre traz consigo calma, segurança, ares de lar, de cais, de segurança. Aquela voz que há tanto tempo não se ouvia e que chegou como música aos ouvidos, composta em tom menor.
- Oi. Como você está? – “Como estou? Puta merda, não sei nem como cheguei à faculdade hoje cedo!”
- Estou bem, e você? – “Eu sei que não está tudo bem com você, sei que não posso fazer absolutamente nada concreto para que fique tudo bem, então cá estão meus ouvidos e meu coração, abertos, teus.”

Depois de algum tempo, de confissões, desabafos e uma vontade absurda de simplesmente ficar abraçada, em silêncio, sentindo apenas as batidas do coração, veio a conclusão de que não importa quanto tempo passe, quais rumos a vida tome nem o quão bagunçada esteja, sempre haverá aquele porto seguro, aquele lar, aquele ninho quentinho e aconchegante, que mesmo longe, cuida, acolhe e é capaz de sanar quaisquer dores e angústias, simplesmente pelo fato de existir, de ser.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Estátua

Fria, de mármore, feição impassível, estática. Não respira, não pisca, não se move, não erra nem acerta, não vive! Absorveu cada pancada dada enquanto esculpida e se trancou dentro do mármore e de sua frieza.
Observa tudo, percebe cada detalhe mas permanece em silêncio.
Sente, absorve, memoriza. Não se move.
Tem olhos cegos (física e emocionalmente), orelhas que não escutam, pele que não sente (só retribui afeto com frieza), nariz incapaz de sentir qualquer tipo de aroma, boca incapaz de proferir qualquer vocábulo (muito menos retribuir o toque de outra boca).
Reverbera com todo seu corpo cada palavra dita ao seu redor, se esconde ao mesmo tempo em que mostra sua superfície – lisa e fria - a quem quiser ver e até tocar.

Mesmo rodeada, admirada e cobiçada, vive a mais fodida genuína de todas as solidões: aquela pela qual optou.
Não aceita aquilo que oferece. Interpreta como maus tratos o que oferece como proteção.
É, realmente, uma estátua: desprovida de cérebro e de coração. Apenas uma imagem semelhante à de um ser humano, porém sem coração nem cérebro, incapaz de sentir e processar. Apenas existe porque foi criada, esculpida pelas cobras na cabeça de uma Medusa de alma atormentada, perdida e barulhenta - com a qual, vale dizer, identificou-se um dia.
Filha do sentimento distorcido e incapaz de se mover em direção à versão pura de todo o sentimento que motivou sua criação.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Crônicas do Cotidiano XVII - Sobre as "cascas" da vida

De um tempo para cá, o Facebook passou a mostrar publicações passadas, de um ano, dois atrás e é engraçado, porque estas publicações mais antigas trazem os mais diversos tipos de sentimentos e emoções, da vergonha à mais pura saudade. Sinto, desde a vontade de simplesmente ignorar, olhar para cima e agradecer pelas mudanças que o tempo trouxe consigo, à vontade de voltar naquele dia específico e reviver situações bastante específicas, minutos, até mesmo aqueles segundos de duração de um sorriso ou de um abraço.
É engraçado como o tempo passa sem que possamos perceber. Sempre que topamos em alguma lembrança, percebemos a velocidade dele, percebemos o quão efêmeras são as situações, as relações, aqueles instantes preciosos que passam e deixam pequenas (grandes) marcas no coração. Fica tão claro o amadurecimento, que chega a assustar.
Me peguei pensando: daqui a um ano, quando o Facebook me mostrar as lembranças do dia de hoje, será que sentirei saudade, vontade de voltar (como senti hoje), ou será que darei graças a Deus pelo passar do tempo?

Pensando aqui com meus botões, não sei até que ponto foi bom ter aprendido a lição de viver intensamente o hoje, me entregar ao momento, ao presente, aos instantes preciosos que ficam cristalizados no coração. Aprendi, mas não sei lidar. Sou péssima em lidar com meus próprios sentimentos, o que é absurdamente contraditório, já que os sentimentos dos outros aparecem para mim como uma planilha do Excel, totalmente claros e organizados. Também não sei lidar com o produto de ter aprendido a viver somente a minha idade e tudo o que vem com ela. Sei sentir, mas não sei o que fazer com o sentir, em si. Mas aí, lembro do meu querido Kant, dizendo que a gente nunca vai conhecer a essência das coisas em si, uma vez que não conseguimos dominar nossos instintos (que nos permitiria este acesso à essência das coisas em si, à verdade) e que meus sentimentos são exatamente o produto desta falta de controle dos instintos, que acaba me cegando.

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Apesar de todas essas angústias, percebi que aquela armadura emocional que a maioria das pessoas vão criando no coração com o passar do tempo, também está chegando por aqui. O silêncio diante de situações que, há alguns anos, me fariam gritar meu ponto de vista (hoje, são reflexões silenciosas. No máximo, um texto.), as indiretinhas amorosas (que hoje, em sua maioria, são caladas, abafadas e atropeladas pela praticidade), os desabafos (que hoje ficam salvos numa pasta no computador).
Ainda atropelo as coisas, me perco entre sentimentos e razão, mas consigo me enxergar um pouco mais racional, por incrível que pareça, e sempre critiquei quem permitiu que o tempo criasse esta espécie de “casca” no coração e cá estou eu, usufruindo da proteção das primeiras camadas dela, me permitindo ficar imersa, protegida, no escuro e no silêncio que esta casca traz, nessa espécie de “útero” que a vida vai criando aos poucos e que tendemos a permanecer deitadas, encolhidinhas, aconchegadas entre lembranças doces e vergonhas, entre sonhos e cutucões da realidade, entre conquistas e frustrações.
Cada vez menos pessoas passam a cruzar essas cascas, o silêncio e a reflexão vão aumentando, a tolerância à dor tende a aumentar, o silêncio e a solidão passam a ser os melhores analgésicos, o travesseiro se torna o maior e melhor confidente e o sorriso no rosto no dia seguinte passa a ser presença obrigatória – dá uma preguiça imensa de dividir com as pessoas o que se passa aqui dentro, ficar “esticando chiclete”, revivendo e cutucando aquilo que machuca e incomoda.

Por ora, ainda desejo ter alguém que esteja sempre dentro dessas cascas, de mãos dadas comigo e de peito igualmente aberto, mas sinto, cada vez mais, a cada frustração, as cascas engrossando e diminuindo a possibilidade de que alguém, além das duas ou três pessoas que entram e saem quando querem, poder entrar e sair daqui. 

domingo, 5 de junho de 2016

Crônicas do Cotidiano XVI - Sobre Segredos

E lá estavam todas aquelas letras distribuídas harmonicamente no papel meio amassado e com franjas, em cima do vidro – impecável, vale salientar – do criado mudo. Fiz questão de deixar um beijo de batom naquele vidro que parecia nunca ter conhecido qualquer tipo de mancha ou de sujeira...
 
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É leve, é belo e é doce. Também é bruto e encantador.
Quando não vejo mais beleza à minha volta e a vida meio que perde o sentido, basta lembrar do seu abraço apertado e daquele sorriso lindo, do seu brilho nos olhos quando me vê; volto a me sentir especial, importante, única e querida, amada.
É isso: você me faz sentir amada. Muito amada. Mesmo com todos os meus defeitos; você não os julga nem cobra que eu me livre deles, você convive com todos eles e me mostra que também posso aprender a conviver com eles.
Dizem que quando falo de você, meus olhos brilham. Creio que além dos olhos, minha alma também brilhe.
Você não precisa estar ao meu lado para me fazer sentir a pessoa mais especial do mundo. Aliás, distância simplesmente não interfere no meu sentimento.
Foi com você que descobri que palavras nem sempre são necessárias, que abraços e olhares profundos conseguem chegar aos cantinhos mais escondidos do coração, que maior que a distância física, é a emocional. Você que me ensinou que não importa o tempo que dure o silêncio e/ou a ausência física, o sentimento permanece intocado, sagrado, imponente no altar, apenas para ser adorado e cuidado. Foi você que me ensinou a preciosidade de um segredo, de um mundo particular, construído a quatro mãos, que sempre estará ali, com as portas abertas para entrarmos e termos alguns instantes de paz.
Mesmo que me fosse possível, eu não mudaria uma vírgula de quem você é, porque você é perfeita; simplesmente perfeita, com todos os seus defeitos.



quarta-feira, 25 de maio de 2016

Crônicas do Cotidiano XV - Sobre confiança e pureza

Sabe aquele alguém com quem você sente segurança suficiente para atravessar um slackline de mãos dadas sem sentir o menor medo?
Aquela pessoa que já te viu nua – no sentido mais amplo da palavra – e não saiu correndo; consegue conviver com seus “outonos” sem se assustar com as feridas nos galhos, sem se amedrontar com seus monstros interiores nem com seus defeitos maiores e mais densos.
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Aquele ser que mesmo longe parece sentir o que se passa dentro do seu coração e quando se encontram, as palavras são totalmente desnecessárias, pois os corpos conversam entre si em perfeita sintonia; respirações descompassadas, cabeças desajustadas, anormalidades compatíveis, medos que entrelaçam as mãos.
Esse alguém é em quem você confiaria, permitiria ser tocada mesmo que toda sua pele fosse removida do corpo, deixando todas as terminações nervosas, veias e músculos expostos, pois você sabe que o toque da pessoa cura, acalma, acalenta, ajeita. Você sabe que é um toque doce, sincero; sem a menor lapidação, porém incapaz de ferir.
É aquele alguém que não saiu correndo quando você tirou a máscara que esconde sua escuridão; um alguém que entrou sem o menor medo, pelo contrário, abriu a porta da escuridão dela e também te mostrou os cantos mais empoeirados e complicados.
É a pessoa com quem você passaria todos os dias da sua vida, sabendo que a admiração, o amor, o respeito e a confiança só aumentariam a cada dia, porque foi esse ser que conheceu – e respeitou – todos os seus pontos fracos e defeitos e mesmo assim permaneceu e permanece ao seu lado, sempre com um sorriso largo e um olhar doce no rosto, sempre de braços abertos a oferecer um colo pintadinho e um abraço apertado.

É uma pessoa que te faz sentir gratidão simplesmente por poder ser exatamente quem você é e te faz sentir especial por ser merecedora de sentimentos tão brutos e puros!

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Apenas fique e continue sorrindo sem mexer a boca...

            Olhar sereno. Mente inquieta.

            Expressão impassível.

            Coração barulhento. Toque sincero.

            Sorri sem mexer a boca.

            Me conhece além do que mostro.

Me invade.

Me vira, revira, bagunça, colore.

            Me morde. Arrepio.

            Me belisca. Sorrio.

            Me beija. Aquiesço.

            Me olha. Me rouba de mim.

            Me liga. Descompasso.

            Me abraça. Dissocio.


            Me possui. Assim.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Insone

02:50. Silêncio. Ouço apenas o barulho da chuva nas telhas de zinco. Um barulho que não sabe se vai ou se fica.
Mais uma noite conforme o ritual: direita, esquerda, costas. Descubro o ombro e cubro a orelha. Descubro os pés e estico a perna. Milhares de pensamentos fazem uma verdadeira micareta em minha mente, a despeito do horário que – teoricamente – tenho que acordar. Finalmente desisto e pego o celular com a única finalidade de checar quantas horas de sono ainda me restam.
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Vejo as horas, faço as contas e vem a dúvida cruel: Durmo 4h e levanto ou fico sem dormir, mesmo?
Tento fechar os olhos e dormir. Vã tentativa...
Depois de cumprido o ritual de posições, cálculos de horas de sono e inúmeras tentativas de adormecer, me peguei refletindo a respeito da minha insônia.
Há uns anos, minhas insônias eram sempre densas, repletas de pensamentos profundos e obscuros, questionamentos absurdamente retóricos, angustiantes. Hoje, a única angústia que passa as madrugadas comigo é a de saber que tenho aula pela manhã, o que sempre foi uma verdadeira tortura, porque não importa quantas horas de sono eu tenha, antes das 10:00 sou um verdadeiro bichinho.

É muito boa a sensação de ter as rédeas da situação, saber que o problema de passar a noite em claro é exclusivamente meu.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Excreção

Te sinto correndo por minhas veias, como uma substância viscosa, pegajosa, nociva.
Sinto escorregar por meus tecidos, invadir minhas entranhas, confundir minhas sinapses, devorar meus pulmões.
Substância aderente, impede o funcionamento devido do meu organismo.
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Embaça minha visão, até escorrer por meus olhos em forma de lágrimas. Corrói meu estômago até sair de mim em vômito. Sufoca minha garganta, até que eu a expulse num grito.
É como heroína na seringa. A atração fatal da agulha pela veia saltando, pulsando, sendo perfurada. Você se mistura a mim, entra no meu sangue, percorre todo o meu corpo, me vicia, me torna tua escrava. Faz de mim o que bem entende, sem o menor pesar.
Pois hoje, ao descobrir que as minhas veias não são as únicas a serem perfuradas e invadidas por você, expilo-te de mim em forma de excremento, de resto, colocando-te em tua posição de inutilidade. Só sabe viciar, fazer mal, corroer, destruir, manipular.

Limite-se à tua seringa e nunca mais ouses perfurar minhas veias e me tomar novamente.


domingo, 24 de abril de 2016

TrintaUmMarçoDoisMilQuinze.

De que adianta a blusa vazia, 
A foto empoeirada, 
A música no 'repeat', 
O ícone na barra do smartphone,
A música no som de chamada, 
As lembranças inundando a mente e o coração...
...se

A blusa é vazia;
A música, um arranjo de acordes; 
A foto, bidimensional;
O ícone, quando aberto, cheio de caracteres digitados e codificados;
A chamada, um sinal de algum satélite perdido da órbita terrestre
As lembranças imateriais e distantes?

sexta-feira, 22 de abril de 2016

As Borboletas que Nunca Voam do Estômago

Certa vez, em um filme, ela ouviu algo como “os amores impossíveis são aqueles que nunca morrem”, e foi obrigada a concordar. 

Ela a escolheu. E agora?

A escolheu e nunca poderá tê-la ao alcance de suas mãos. 

Todas as relações dela sempre tiveram uma espécie de prazo de validade, aquele encantamento e nervosismo diante do encontro do outro nunca duraram mais de seis meses, e cá está ela - há mais de um ano - sentindo-se como uma adolescente a cada vez que sabe que irá encontrar a dona daqueles olhos verdes que falam tudo o que a boca cala; quando sabe que poderá jogar-se em seus braços, sentir a pele macia de seu rosto, sua respiração, puxar seus cabelos, ser presa e sofrer um ataque feroz de cócegas, morder o queixo dela só para ouvi-la gritar e fazer careta.

Os monstros eram compatíveis. As neuroses também. Os toques se encaixavam perfeitamente (e permanentemente). A compreensão fez-se uma constante. O respeito de tocar com carinho o mundo do outro sempre foi a base dessa relação meio torta e destrambelhada, que sempre as presenteia com pacotes coloridos, perfumados e repletos de bons momentos, de instantes que revigoram a alma e dão sentido até mesmo às dores, afinal, para que o encaixe fosse tão perfeito, as almas foram lapidadas, coisa que compete às adversidades da vida.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

As notas da Caixa de Pandora

Uma sequência intensa de notas em tons menores vinha da sala de estar, transbordando sentimentos que eram quase palpáveis; era possível senti-los escorrendo pelo corpo, como chuva forte caindo do céu em pingos pesados que rapidamente molham o corpo todo.
Lá estava ela... olhos fechados, janela aberta, sentindo o vento gelado de Junho acariciar sua face enquanto, como mágica, seus dedos conversavam com as teclas do piano, fazendo seus sentimentos ecoarem pela casa, reverberarem pelos cantos, penetrarem os estofados.
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A princípio tocava com delicadeza, com a timidez de alguém que começa a dizer a um estranho como se sente, o que já viveu. Aos poucos, a intimidade com o piano foi surgindo, as notas ficando mais altas e fortes. Sentimentos mais densos. Seu corpo todo movimentava-se na melodia de Beethoven's Silence, tocada com toda a melancolia que ela guardava dentro de si. Durante as pausas, prendia a respiração, retesando seu corpo. Quando voltava a tocar, sentia as lágrimas pesadas caírem de seus olhos, escorregarem por seu rosto e caírem nas teclas de seu confidente, misturando-se às pontas de seus dedos longos e frios, com unhas roídas.
Ao sentir um ínfimo raio de Sol aparecer e tocar sua pele, calmamente levantou-se, fechou o piano, respirou fundo e caminhou em direção ao quarto. Sua tristeza, suas confissões, suas notas melancólicas, suas dores pertencem somente à madrugada; sua Caixa de Pandora, que durante o dia deve permanecer fechada para que sua máscara lhe caiba e a vida lhe pareça menos amarga.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Blasé

            Naquela sala à meia luz, sentada no tapete, ao lado do cinzeiro de prata e do copo com whisky, se perdeu  nas curvas sinuosas da fumaça que tocava  seu rosto e irritava os olhos. A regravação de Feeling Good, por Avicii, ecoava por todo o ambiente, reverberava os quatro cantos de sua mente – sim, naquele momento ela se sentiu com a mente totalmente quadrada, hermeticamente fechada, sem saída, sem luz, sem ar fresco; com o mesmo cheiro de whisky, cigarro e casa fechada que estava em sua sala.

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        Flashes em câmera lenta, cenas movendo-se em sua mente na mesma velocidade e intensidade da voz pastosa do vocalista. Imagens esvanecidas, com os tons das fotografias dos anos 70. Sorrisos, abraços, brincadeiras, lágrimas, brigas, reconciliações, esperanças chocando-se com a realidade de algo doentio que há poucos dias ainda era chamado de presente.

            Retornou à realidade, pegou o copo e tomou os três dedos de whisky que encharcaram todas essas lembranças, borraram todas as imagens, deixando algo confuso, atemporal. Recolheu calmamente - com as pontas de seus dedos finos, compridos e gelados, com esmalte descascando - do tapete a bituca e jogou dentro do cinzeiro, acendeu outro cigarro, andou até a janela e pode ver os carros indo e vindo na Avenida Paulista; borrões vermelhos e brancos, na verdade, porque a miopia e o álcool levaram embora a nitidez das imagens – e dos sentimentos, também.

domingo, 17 de abril de 2016

Crônicas do Cotidiano XIV - E o amor, vó?



-Vó, a senhora acredita em amor perfeito, mesmo que esse "perfeito" seja extremamente subjetivo?


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-Ih, minha filha, já acreditei, viu? Aquela fantasia linda, de que alguém que se encaixe nas nossas expectativas, tenha as neuroses compatíveis com as nossas, nos ame incondicionalmente e tenha disposição de cuidar das feridas no nosso coração, assim, de graça, é uma invenção linda da nossa alma. O que você pode dar a sorte de encontrar na vida, e que chegará mais perto disso, será alguém que irá te oferecer a amizade mais pura possível. Fora isso, são todas idealizações nossas. Nunca haverá uma pessoa aberta a uma relação dessas, seja por quais motivos forem. Pode ser tudo perfeito, mas sempre haverá "aquele" porém, que, sendo pessoal ou consequência da vida, será como o vento, lentamente destruindo o seu castelinho de areia, construído, algumas vezes, a quatro mãos, repleto de ilusões e sentimentos em cada grão. Por isso, filha, nunca entregue seu coração em uma bandeja, nunca faça de outro coração o centro de sua vida, a razão dos seus sorrisos. O peso das suas lágrimas pode, a qualquer momento, encharcar seu coração, fazê-lo desabar no chão, na realidade, e, vá por mim, isso dói imensamente.

Cuida desse diamantezinho que você carrega aí dentro e procure não deixar que a vida o lapide demais, ele pode acabar virando um pedacinho ínfimo de algo que é tão grande e belo.

domingo, 6 de março de 2016

Crônicas do Cotidiano XIII - Tempo e Vida

            Passam as horas, as pessoas, os dias, as semanas, os meses, os anos, as palavras, as oportunidades, as ideias. O que ontem era silêncio, hoje é explicação. O que hoje é grosseria, amanhã será compreensão. O silêncio que poupa, é o mesmo que exaspera. A omissão que deixa a resposta subentendida, é a mesma que dá asas à imaginação – quase sempre para o lado mau. A boca que “morde”, é a mesma que “assopra”.

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            O tempo. Ah, o tempo... Ele passa, atropela, esmaga, adormece, leva embora sentimentos e lembranças, traz à tona situações e explicações. Ele nunca se ajusta ao nosso tempo. É senhor de si, dono das respostas e das dúvidas, dos punhais e das pétalas. Creio que se o tempo tivesse signo, seria capricorniano.


            No meio desses furacões compostos pela vida em si, servidos em bandejas de ouro pelo tempo e lentamente degustados pelos nossos sentimentos, creio que só nos caiba resiliência e compreensão. O tempo não pára para amarrarmos os cadarços que a vida desamarrou. A vida não tem cuidado com o que irá nos trazer e com o tempo que levará para ferir ou cicatrizar.

terça-feira, 1 de março de 2016

Não demora?

Fica comigo até eu dormir
Segura minha mão até ela esquentar
Me abraça até meu coração se acalmar
Me faz cafuné até eu "ronronar"
Me faz cócegas até eu perder o ar

Repara em mim
Me cuida
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Diz que sou especial e diferente
Me dá uma florzinha roubada da rua
Coloca um anel no meu dedo, mais um travesseiro na minha cama e mais um par de sapatos jogados na sala
Apresenta tuas imperfeições e limitações aos meus monstrinhos internos
Me traz chocolate, beijo na teste um abraço sem data

Me dá a segurança de poder amar e ser amada, cuidar e ser cuidada, ver e ser vista, ouvir e ser escutada, encantar e ser encantada.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Crônicas do Cotidiano XII - "Rompendo" amarras?

É (negativamente) incrível como a nossa atual sociedade quer nos ensinar a abrir mão da nossa própria subjetividade. São “dicas” de comportamento, relacionamento, sexo, alimentação, criação e educação de filho, vestuário, cabelos, etc. É como se fossemos, a todo instante, persuadidos a existirmos feito robôs fabricados em série, desprovidos de qualquer tipo de peculiaridade comportamental e existencial. Até mesmo aqueles que querem fugir dos padrões, acabam sendo catalogados, carimbados e etiquetados. Tudo aquilo que foge ao dito “normal”, é doença, transtorno, distúrbio, tem mil medicações, dicas, regras. Isso quando não acaba sendo gourmetizado, “cool”.

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A humanidade lutou – e luta – tanto para conseguir a liberdade, mas será que essa liberdade é real? Até onde aquela crise dos ideais românticos e do surgimento do Regime Disciplinar está se repetindo na nossa sociedade? Até onde o “normal” é desprovido de interesses mercadológicos? Pensamos que somos livres, que mandamos em nossos próprios narizes e que nossas escolhas são feitas única e exclusivamente com base no que desejamos, mas em qualquer canto há uma câmera nos vigiando (em nome da "segurança", claro!), alguém nos apontando e comentando, algum ouvido registrando nossos ruídos; se não seguirmos as infinitas cartilhas comportamentais e emocionais, não somos dignos de aceitação; se seguimos o que queremos, somos classificados e encaixotados do mesmo jeito. E pior ainda: quando seguimos as normas e acabamos rompendo com os padrões, somos duplamente desclassificados, julgados e classificados, como se fossemos verdadeiros traidores.

Creio que a morada da verdadeira liberdade seja dentro de nossas mentes e de nossos corações, onde câmera nenhuma enxerga, onde ouvido nenhum escuta, onde limites não habitam. E essa liberdade só passa a existir genuinamente a partir do momento em que tomamos consciência do verdadeiro significado da palavra Liberdade, que não significa passar por cima dos outros feito tratores egoístas e ambiciosos (o nome disso é falta de respeito ou defesa); para que ela exista, é necessária a consciência do respeito, do altruísmo, compaixão, igualdade; a partir daí, nos damos conta de que realmente somos todos iguais, suscetíveis aos mesmos fenômenos, temos as mesmas necessidades básicas, todos temos nossos monstrinhos internos, nossos pensamentos inescrupulosos, nossos desejos transgressores, e a única coisa que diferencia o que a sociedade chama de “loucos e normais” é a coragem que alguns têm em simplesmente optarem por não vestir a máscara antes de sair de casa (lógico, exceto em casos de patologias). Tal consciência, faz com que, dispondo da liberdade, não ultrapassemos os limites existenciais dos demais nem abramos mão de nossa própria existência em função do “encaixe” na “normalidade”.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Crônicas do Cotidiano XI - E se?

            Se você estiver com o coração fechado e se pegar pensando: “pode aparecer o amor da minha vida e eu perder a oportunidade”, saiba que não perderá. Primeiro, porque você vai saber que é o amor da sua vida; segundo, ele vai saber esperar o seu momento de se abrir; terceiro, ele não vai te ferir; quarto, se ele for embora, deixe, não merecia ficar. Automaticamente, quando algo não ameaça, não faz sentido proteger-se.


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Não importa se é inverno ou verão, fevereiro ou dezembro, dia das crianças, carnaval, pascoa, não importa a data, não importa se são 6 da tarde, 2 da manhã ou 8 da noite. O amor vai bater à sua porta e você vai abrir porque você vai saber, pelo sorriso e olhar da pessoa, que é aquele reencontro tão esperado, sem que você tenha de estar preparada para isso, porque quando esse alguém chegar, ele vai te entender, te aceitar, vai te amar como você é, terá paciência com suas fraquezas e incapacidades, te dará a mão e guiará, ao invés de criticar, aprenderá a rir dos seus monstros internos, te fará ter leveza  mesmo em situações complicadas, portanto não há mal nenhum em viver com o coração trancafiado. Aliás, nos tempos de hoje, é o melhor a ser feito, porque quem realmente merecer estar dentro dele, chegará à sua vida com a chave certa para abrir todos os cadeados e saberá retirar todas as correntes.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Crônicas do Cotidiano X - Quebrou? A gente pode consertar.

            Esses dias me peguei pensando sobre como deve ser mágico conhecer alguém durante a adolescência, do auge dos 15/16 anos, se apaixonar, viver todo aquele encanto afobado, desesperado e desajeitado de quando temos tal idade, namorar até a chegada da idade adulta, noivar, montar a casa, deixa-la com a carinha do casal, planejar o casamento, a festa, trocar alianças e fazer juras de amor eterno olhando nos olhos daquela pessoa que mesmo depois de adulta te deixa com a mesma sensação de quando tinham 16 anos e se apaixonaram, ter as famílias reunidas para celebrar, saber que dali em diante não se é mais um só, são duas famílias entrelaçadas, são duas vidas entregues e dispostas a passar por cima de inúmeras adversidades afim de construírem uma história sólida.

            Passa a festa, vem o dia a dia. As manias, as bagunças, os gostos, as contas, as sogras, os trabalhos, a irritação, as preocupações, os filhos! Quando os pés começam a retornar à realidade, eis que chegam eles, pequeninos, frágeis, dependentes, ladrões de noites de sono e pratos de comida quentes. Nesse momento, é hora de união, de admirar aquela coisinha mole e sorridente que nasceu da união, da superação dos perrengues e da divisão de alegrias e sonhos. Em pouco mais de quatro ou cinco anos, já são dois ou três pequenos correndo pela casa, jogando bola na sala, desenhando em paredes com giz de cera, fazendo birra diante da comida no prato, aparecendo no quarto do casal no meio da madrugada com a carinha amarrotada e os cabelos ouriçados pedindo colo.

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            Mais uns 20 anos e lá está a mesa da ceia de Natal. Os filhos e filhas já casados, e formados. Dois netinhos correndo pela casa, pegando porta retratos da estante e perguntando aos avós quem são as pessoas, uma filha sentada no sofá com o barrigão de 8 meses redondinho, sentindo o bebê mexer e pegando o pezinho, a outra filha servindo as crianças, os genros conversando sobre banalidades do mundo masculino. Todos sentam-se à mesa e comemoram a chegada de mais um natal, de mais um ano unidos e aguardando a chegada do novo membro da família.
            Ao final da noite, cada um dorme em um canto da casa, embora todos os quartos ainda estejam prontos para receber os filhos e filhas quantas vezes forem necessárias. As crianças, desmaiadas e descabeladas.
            Em momentos como este, creio que as “matrizes” da família devam sentir-se tomadas por um sentimento inenarrável. Deve ser uma espécie de gratidão, de segurança, de orgulho. Depois de tantos anos, de tantos acontecimentos, de tantos perrengues e conquistas, olhar para os lados e ver aquele adolescente por quem se apaixonou e com quem se casou, já de cabelos brancos, ver os filhos e filhas já com suas próprias famílias e seguindo suas próprias vidas, voando com suas próprias asas para construírem seus próprios ninhos... Ah, deve ser gratificante demais construir uma vida ao lado de alguém que conhece teu melhor e teu pior, que sabe das tuas flores e espinhos, que não soltou tua mão mesmo quando o vendaval foi forte, que soube comemorar e festejar as conquistas comuns e individuais.
            Pensando e escrevendo sobre isso, concluo que concordo com uma frase que vi no facebook há alguns anos e achei absurda: “No meu tempo, quando algo quebrava, a gente não jogava fora. Éramos ensinados a consertar”. Talvez eu tenha aquilo que chamam de “Alma Antiga”, talvez eu sonhe com uma vida construída ao lado de alguém com quem seja possível uma relação sólida e segura, alguém que me permita amar e que me ame de volta sem restrições, alguém que me faça ter certeza de que por mais forte que seja a tempestade, nossas mãos não irão se perder, alguém que tenha a disposição de “consertar” ao invés de “jogar fora”. Talvez eu sonhe demais, queira demais, sinta demais... Ou talvez não...

            

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Crônicas do Cotidiano IX - Febre, Flores e Quadros Indolores

            Há alguns dias, estava mexendo no bloco de notas do celular e me deparei com o seguinte: “amar em terceira pessoa é fácil -> escrever sobre”. A única coisa que consigo lembrar é que essa anotação foi feita antes de dormir em alguma noite que já se perdeu no tempo e levou consigo o que eu tinha a dizer sobre “amar em terceira pessoa ser fácil”. Simplesmente não consigo estabelecer algum tipo de conexão com a frase e meus sentimentos, o que torna impossível escrever.
            Mas como cabeça de aquariana é um poço de devaneios, decidi escrever sobre como estou me sentindo após uma febrinha de 38,7 º. Acho que nunca senti tanto frio assim. Não sabia se me cobria, se tomava um banho escaldante, se tomava antitérmico ou se chorava (sim, estava com tanto frio e dor no corpo que deu uma puta vontade de chorar). Optei pelo banho escaldante e meus cobertores. Óbvio que a febre não cedeu e tive que tomar um antitérmico e esperar pacientemente.

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            Conforme a febre foi cedendo, senti como se ela levasse embora de mim inúmeros sentimentos que o tempo tornou obsoletos, que ficarão apenas em minha memória, como pétalas desbotadas e sem perfume, colocadas num quadro pendurado na tal “parede da memória”, mas sem doer. Sim, sem doer... essa é a parte mais fascinante. Nunca me passou pela cabeça ter quadros indolores nessa parede. Todos os que até agora foram pendurados nela, me fizeram sentir como se tivessem sido brutalmente arrancados de dentro do meu peito e pendurados ainda pulsando, morrendo lentamente, numa espécie de niilismo existencial.
            Agora, entre Halls menta-prata, Sam Smith, Marlboro Gold e uma tosse hiper chatinha, consigo sentir meu corpo mais leve e meu coração limpo, florescendo novamente entre brincadeiras bobas, gargalhadas, apelidinhos escrotinhos, caretas, coices e ternura.
            Me sinto leve e livre. Sem febre, sem dor, sem quadros com sentimentos amputados pendurados na parede, sem pesar, sem temor.

                                   Me sinto em paz.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Minha Hora

            E lá estava ele. Mais uma vez impassível, sentado em sua poltrona marrom estofada. Pernas cruzadas, sapatos italianos, calça cinza deixando sua meia à mostra. Apoiava o cotovelo direito no braço da poltrona, segurava o livro com a mão esquerda. Na mesa ao lado, uma xícara branca com café quente. Entre um gole e outro, ajeitava os óculos e passava os dedos entre os fios grisalhos de seu cabelo que caía nos olhos.
            Sempre fora um homem introspectivo e indiferente ao resto do mundo. Completamente incapaz de reparar a beleza do pôr do sol na janela de 5 metros bem ao lado.
            Quando casamos, há 25 anos, ele era um menino franzino, sempre com seus livros, imerso em sua mente, que deve ser uma espécie de Jardim Suspenso, já que sempre passou tanto tempo por lá, passeando entre suas belezas ocultas.
            Hoje, do auge de seus 50 anos, ele já não consegue mais conversar sobre banalidades, por mais que se esforce. Seus olhos já não possuem mais brilho, movimentam-se mecanicamente – deve ser algum tipo de sequela do hábito de ler compulsivamente – e mal conseguem seguir as curvas dos meus cachos.
            Passei algum tempo observando-o – umas 3h mais ou menos – e ele sequer desconfiou; não consegue mais sentir a presença de quem quer que seja. Onde está o homem por quem me apaixonei?
            Fechei os olhos, respirei fundo, me apoiei no braço do sofá – deixei a marca de meus dedos no estofado branco – e fui até nosso quarto. Abri o armário. Tantos anos, tantas histórias penduradas naqueles cabides, tantos risos e lágrimas embolorados e felpudos... Melodias distorcidas, tapes acelerados...
            Estiquei o corpo ao máximo e alcancei a mala. Aquela mala marrom com alça, que compramos quando ainda namorávamos, quando viajamos escondidos ao litoral – dois magricelas inconsequentes, com exatos RS143,20 na carteira. Ah, a juventude! Por alguns instantes, acariciei a mala como se fosse o rosto dele quando ainda tinha algum tipo de expressão. Senti meus olhos ficarem marejados. Engoli o nó da garganta, respirei fundo, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e comecei a retirar meus cabides, dobrar peça por peça e colocar com carinho dentro da mala – Era como se eu estivesse tornando concreto o que venho fazendo com meus sentimentos e emoções nos últimos anos, dobrando e guardando com carinho numa mala.



            Fechei as duas dobradiças da mala, sentei na cama e olhei para a foto no meu criado mudo. Nós dois e nossos filhos. Melissa sorrindo com suas sardinhas e cachos ruivos. Lucca com pose de homem, igual ao pai. Ele esboçando um sorriso e eu no meio de todos, sorridente, mas com o olhar melancólico. Passei as pontas dos dedos no vidro, dei um beijo, abri a mala, guardei e fechei de vez, para sempre.
            Saí do quarto e lá estava ele, sentado como quando fui para o quarto. Parei ao seu lado, coloquei a mala no chão, retirei o livro de sua mão, olhei fundo em seus olhos. Segurei seu rosto com as duas mãos e dei um beijo em sua testa.
            - Obrigada. Obrigada pelos nossos filhos. Obrigada pelos sonhos. Obrigada por nós, pelo que fomos e pelo que nos tornamos. Obrigada por ter feito com que eu o amasse tanto a ponto de ter coragem para seguir com minha vida e respeitar teus momentos, tua solidão inata. Eu te amo aqui ou em qualquer outro lugar do mundo e você sabe disso. Cuida bem de você, porque chegou a minha hora, a hora de cuidar aqui de dentro.

            Peguei minha mala e saí. Sim, as lágrimas pesadas rolavam por meu rosto sem consentimento. Entrei no elevador, desci no térreo, saí pelo portão, coloquei a mala no chão e respirei fundo o ar quente da chuva de fevereiro. Estava livre. Livre para amar, para ser amada, para cuidar de mim mesma, para existir!

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Crônicas do Cotidiano VIII - Sobre anjos

            Saí de casa em pleno 1º de janeiro. Andei até a esquina, desci a rua e fui para o ponto de ônibus. Passava das 20h e não havia uma alma na rua. Geralmente, não sinto medo ao andar sozinha à noite pelas ruas, mas confesso que fiquei um tanto quanto petrificada quando olhei para o final da rua e vi um sujeito super “mal encarado” vindo, andando como se fosse o dono do pedaço, como se fosse um leão andando em sua jaula, pronto para atacar a qualquer momento. Procurei manter a calma e ainda me dei uma bronca mentalmente “Não, Gabriela, não julgue as pessoas apenas pela aparência, com base em estereótipos que te foram ensinados durante toda a vida. As pessoas são mais do que isso”, mas foi em vão. Continuei com o cu na mão.

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            Quanto mais o sujeito se aproximava, mais eu procurava me manter calma, mesmo com vontade de sair correndo, gritando e chorando de medo. Por alguns instantes, achei que ele fosse atravessar a rua – Fo-deu, pensei – mas ele não o fez e eu suspirei aliviada. Nessa hora, vi que havia uma senhora na garagem de casa, com seus 500 gatinhos, falando ao telefone. Caso algo me acontecesse, eu teria a quem gritar por um “help”.
            Depois que o cidadão mudou de quarteirão e seguiu seu rumo, fiquei mais calma, mas ainda com medo. Nesse momento, alguém soltou um cachorro preto e grande para dar uma volta na rua e mijar a cada metro que andasse. O cão andou pelo quarteirão e veio até mim. Lógico que estiquei a mão e falei fininho com ele. Meio assustado, veio me cheirar – me revistar, na verdade – e eu achei a coisa mais doce do mundo. Fiz carinho no rostinho dele e parei, foi quando ele esfregou a carinha na minha perna, com as orelhinhas para trás e o rabinho balançando, como quem dizi
a “faz mais”. Sorri e fiquei fazendo carinho nele, que após alguns instantes, saiu de perto, foi até o meio da rua e voltou, permanecendo ao meu lado.

            Vi meu ônibus na esquina do quarteirão da frente. Suspirei aliviada.
            Quando o ônibus parou, me despedi do meu colega e entrei. Ele só foi embora depois que o ônibus saiu.
            Quem me conhece, sabe que não sou nada muito religiosa. Tenho minha crença no amor universal, no respeito, na compaixão e na sinceridade; creio num Deus diferente do Deus mau que a Bíblia prega, que castiga e pune 24h/dia. O meu Deus é puro amor e compaixão. Enfim, não vem ao caso minha crença. O que queria dizer é que quando fiquei morrendo de medo, sozinha na rua escura, pedi a Deus que ficasse ao meu lado, e foi quando apareceu meu coleguinha pretinho, peludo, que ficou comigo até que eu embarcasse na lata de sardinha, digo, ônibus.
            Fiquei emocionada, com os olhos cheios de lágrimas. Enxerguei tal situação como um bom presságio, como se fosse a vida me dizendo para ter calma, que esse ano seria repleto de surpresas e bons sentimentos, que por mais que parecesse que as coisas boas estivessem a milhas de distância, elas estão a menos de um palmo da ponta do meu nariz, basta saber enxergar e valorizá-las.
            Obrigada natureza, obrigada meu Deus, obrigada amiguinho pretinho e peludinho que me fez companhia e me pediu carinho esfregando o focinho na minha perna.

            Mais uma vez, sou grata à vida e suas surpresas.