terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Crônicas do Cotidiano VII - Meu desejo

            Nunca acreditei nesse lance de “ano novo, vida nova”. Não consigo ver sentido nessa coisa de que um minuto traz consigo mudanças imensas, encerra ciclos, leva embora pessoas e situações obsoletas, faz com que nasça uma flor de garra no peito para irmos atrás dos nossos objetivos.
            Não é a virada do ano que faz com que a vida mude, com que a gente cresça, com que os problemas acabem. Todo ano é a mesma coisa: pessoas depositando toda a responsabilidade e expectativas no ano novo e maldizendo o ano que finda. Poucos têm a consciência de que o ano não é um sujeito, não tem responsabilidades nem desejos; é apenas uma convenção.
            Se fossemos capazes de olhar para os lados ao menos uma vez por dia, conseguiríamos valorizar as pequenas – grandes – coisas com as quais a vida nos presenteia, seja uma flor no meio do caminho, o sorriso de uma criança, uma conversa com um estranho, um cãozinho abanando o rabinho.... Aprenderíamos a sentir gratidão

            Meu 2015 me fez plantar, cultivar e ver brotar em meu coração a sementinha dessa tal de gratidão. Me fez valorizar minha vida exatamente como ela é, cheia de altos e baixos, de curvas estreitas, tempestades, brisas mornas, e acima de tudo, resiliência. Descobri que posso confiar na mulher que vejo ao olhar meu reflexo no espelho. Aprendi a conviver com minhas fraquezas e limitações sem que elas me façam sentir inferior. Aprendi a amar minhas cicatrizes internas e externas. Aprendi a admirar minha história e ser grata por cada vivência, das menores às maiores, porque elas me fizeram quem sou hoje. Descobri que estar em constante aprendizado é fantástico e que não há nó sem solução, mesmo que ela não seja imediata.
            Nesse ano, descobri que estou me tornando, dia após dia, uma mulher que eu admiraria enquanto criança...E quero manter essa meta até o final da minha vida. Continuar perguntando a mim mesma “eu admiraria uma mulher que tomasse tal atitude? ”.

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            Meu único desejo para 2016 é amor, muito amor. Amor próprio, amor de amizade, amor de família, amor de animaizinhos, de namoro... Amor, porque amando a nós mesmos, conseguimos contornar nossas fraquezas. Amando aos nossos amigos, conseguimos compreender suas falhas sem colocarmos a amizade em risco. Amando a nossa família, a convivência fica mais fácil e leve. Amando nossos animaizinhos – e os dos outros também – nunca nos sentiremos sozinhos e sempre teremos alguém para amarmos incondicionalmente, sem medos ou restrições. E amando aquele alguém especial, a vida fica mais colorida, as borboletas fazem verão no estômago, a pele fica arrepiada e o sorriso marca presença no rosto.

            

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Crônicas do Cotidiano VI - Meu ninho

            Semana passada, navegando no Spotify, conheci uma música do Emicida com a Vanessa da Mata, Passarinhos. Foi amor à primeira vista. A letra me deixou bastante reflexiva e a melodia me encantou. A harmonia com que as notas dançam umas com as outras, a suavidade nas vozes, a levada gostosa e leve. Sem muita concordância, sem maiores floreios, a música passa a mensagem de maneira suave, delicada e direta.
            Aproveitando esse clima “natalino” – embora eu prefira chamar de consumista e hipócrita – que pressupõe a valorização imediata das relações, dos valores considerados importantes pela nossa sociedade e embalada pela “vibe” da música, fiquei pensando sobre essa busca incessante que temos, enquanto humanos, por um ninho, um lar, um colo para ser só nosso, um sorriso que tire a graça dos demais, um olhar que nos deixe completamente desarmados, uma voz que nos faça sorrir com a mesma inocência com a qual sorríamos enquanto crianças; a busca de alguém que traga nossa inocência à tona e nos desperte todos aqueles sentimentos que nos faziam sentir completos enquanto crianças. E não me refiro a cônjuges, me refiro a relações no geral.

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            É muito bom olhar ao redor e ver pessoas que me fazem sentir especial, querida, importante, amada. É gostoso trocar mensagens com minhas amigas e rir até doer a barriga. Me dá segurança saber que sempre que precisar terei um colo para acalmar meu coração. Fico encantada com a magia das relações humanas; vivenciar a transformação de uma relação já meio esfarrapada – como a que sempre tive com minha mãe – transformando-se em uma relação bonita, adquirindo perfume doce e cores vivas e vendo os brotinhos de sentimentos bonitos crescendo.

            Mesmo com o mundo vivendo esse eterno colapso, consigo me sentir segura, cercada por relações baseadas em sinceridade, confiança, alicerces firmes e bem fincados no solo, mas que me fazem tocar as nuvens, pois me permitem ser exatamente como sou. Consigo ter forças para me tornar, a cada dia, uma pessoa melhor, me fazer mais e mais feliz, contribuir para que essas relações sejam cada vez mais belas e fortes, imunes à erosão do tempo.
            Hoje, posso dizer que mesmo com todas as adversidades da vida, com os tropeços em degraus ocos, sou extremamente feliz e grata pela minha vida. Posso viver despida de máscaras e fantasias, posso andar descalça na chuva sem medo de ser atingida por emoções, posso sentir a pele arrepiar sem entrar em pânico. Posso viver meus ricos 22 anos, deitar e rolar na magia de ver a vida com leveza e brincadeiras idiotas que roubam risos gostosos de quem eu amo, que fazem minha cadela abanar o rabinho e fazer manha, que me fazem sentir bem sendo exatamente quem e como sou.
            Em suma, posso dizer que estou construindo meu ninho dentro de mim mesma. Posso dizer que sou grata à vida por ter colocado em meu caminho pessoas imunes à liquidez da sociedade em que vivemos.
            Sou grata por ter minhas amigas escolhidas a dedo.
            Sou grata por estudar o que amo.
            Sou grata por minha família.
            Sou grata por acordar todos os dias e ver minha cadela explodir de alegria.
            Sou grata por poder sorrir e amar de forma leve.
            Sou grata por ser produto da minha história, por ter conseguido aprender a mudar a cadeira de lugar e ver o pôr do sol quantas vezes quiser e por quantos ângulos quiser.
            Sou grata até pelos espinhos que me machucaram tantas vezes e por tanto tempo, porque eles me ensinaram o valor das flores.

            E só para não perder o hábito de fazer confusão no que escrevo:
                        Sou grata por ter apre(e)ndido a gratidão e feito dela meu ninho!


sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Crônicas do Cotidiano V - Tempo, és um senhor traiçoeiro

            “Fique”, “Não vá agora”, “Volte”, “Eu gosto de te ter por perto”, “Sorrio quando leio seu ‘bom dia’ na mensagem de texto”, “Sinto ansiedade antes de te encontrar”, “Tenho medo de perder você”, “Morro de ciúme de tal pessoa”. São tantas coisas que as pessoas deixam de dizer mesmo com a incerteza a respeito do amanhã e da possibilidade de um momento que seja "adequado", que me pergunto se realmente vale a pena esse silêncio, sejam quais forem as justificativas.

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            Certa vez, durante duas ou três aulas da faculdade, foi debatido o tema dos tempos Presente, Passado e Futuro. O autor defendia que o Passado trazia segurança, mesmo que narrasse fatos ameaçadores, pois eram apenas história, não ofereciam riscos ao Presente nem aos planos para o Futuro, que por sua vez é incerto, assusta, amedronta, não permite que sintamos segurança, não garante a chegada ao ponto desejado; e o Presente, o aqui e agora, as nossas ações, os milésimos de segundo em que realizamos nossas tarefas para chegarmos ao futuro, e que imediatamente torna-se passado, fazendo com que um novo Futuro apareça.
            Trazendo tais reflexões à minha vida, concluo que Presente, Passado e Futuro, numa dialética bastante complexa, acabam tornando-se uma coisa só; quem sou e o que faço e desejo hoje é fruto do que me aconteceu ontem, o futuro que idealizo é produto do que meu ontem, enquanto potência, fez ser meu hoje, que corresponde à passagem ao ato, ao futuro.
            Muitas vezes, nesse jogo muito louco entre presente, passado e futuro, no intervalo entre potência e ato, passamos por situações traumáticas que nos fazem tomar posturas diferentes diante de uma possível próxima situação que se assemelhe à que nos foi desagradável. Até aí, tudo bem. Mas quando nos damos conta de que por mais parecidas que sejam as situações, serão diferentes as pessoas e circunstâncias que nos cercam, surge a dúvida: “será que está certo agir assim, transferindo para o futuro, numa situação semelhante à que já vivi, as atitudes que gostaria de ter tomado diante daquela que já foi massacrada pelo relógio? ”. Não, não está certo. E não é errado não estar certo, pois é através dos erros que vem a sabedoria. Creio que não esteja certo, porque, se as pessoas e circunstâncias são diferentes, mesmo que a situação seja absurda e abusivamente semelhante, minhas atitudes e decisões deveriam ser adequadas à realidade tal qual se apresenta.
            Quantas oportunidades são perdidas nessas transferências, nessas tentativas incoerentes de “remissão de erros”? Quantos perdões deixamos de liberar, quantas segundas chances vão para o ralo, quantas alegrias dispensamos simplesmente pela vaidade de batermos no peito e dizermos “eu não quebro mais a cara diante de tal tipo de pessoa”? 

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            Da mesma forma que num piscar de olhos o presente se torna passado e nos impulsiona ao futuro, as oportunidades direcionam nossos caminhos na vida e uma escolha feita numa fração de segundo pode mudar nosso rumo para sempre. Não consigo conceber a ideia de "destino”; o que alguns gostam de chamar de “destino”, eu chamo de Produto das Minhas Escolhas. “Ah, mas como explicar o fulano que encontrei por um acaso numa rua X, em tal evento num dia chuvoso em que eu não esperava que nada acontecesse?”. Simples: se o tal fulano estava na rua X, num dia chuvoso, naquele evento, foi porque os gostos do tal fulano são compatíveis aos seus, porque da mesma forma que você optou por estar naquele local, ele também optou. Não consigo ver lógica num simples encontro ao acaso, coincidente. Posso estar sendo cartesiana demais? Sim, posso. Porém, tal visão faz com que a vida faça mais sentido, seja mais fascinante.

            Creio que se conseguíssemos compreender que encontramos o fulano na rua X, naquele dia em que nada estava previsto para acontecer, foi porque nossas escolhas nos levaram até ali e não vale a pena deixar que a oportunidade de ter bons momentos ao lado dele seja levada pelo vento porque a vaidade e o ego esqueceram a porta aberta hoje ao saírem correndo para nocautear as feridas do passado numa rua parecida.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Minha Lótus

            Sabe aquela velha frase clichê “só quem tem um cão sabe o que é amor verdadeiro”? Após os 11 anos e 3 meses mais especiais da minha vida, só me resta a redenção à frase.

3 anos
            É um sentimento inenarrável chegar em casa com um serzinho de mais ou menos 15cm nos braços, ouvir o chorinho, os grunhidinhos, ver aquela coisinha andando toda desajeitada e caindo sentada, passar pelo menos um ano sem ter os pés mordiscados, não poder deixar nada no chão caso não queira encontrar danos nos objetos, encontrar dentinhos pelo quintal, fazer massagem na barriguinha por conta de cólicas, chegar em casa e dar de cara com aquela coisa barriguda e desengonçada abanando o rabinho da maneira mais doce e desajeitada possível e latindo fino e estridente.
            Então, esse serzinho vai crescendo, mudando o latido, andando com mais firmeza, conseguindo subir no sofá e na cama, roubando comida de cima da mesa, abocanhando sapatos e correndo como se não houvesse amanhã, nunca mais saber o que é ter uma cama exclusiva ou ter uma roupa preta que seja de fato preta.
            Nos dias de angústia, é impossível se sentir só; basta olhar para o lado e dar de cara com aquele olhar que diz “estou aqui, você não está só”, em seguida ter uma patinha puxando o braço e ganhar várias lambidas nas lágrimas de um serzinho com as orelhinhas abaixadas e o rabinho freneticamente movendo-se da direita para a esquerda. Fora os “cutucões” no queixo com o focinho, impelindo a realmente levantar a cabeça.


5 anos
            Poder dividir as alegrias, correr pela casa, tomar banho de sol, brincar de cabo de guerra, se esconder embaixo das cobertas e ser pisoteada e babada para depois morrer de rir, poder compartilhar todo e qualquer segredo com a certeza de não ser julgada ou reprimida, passar exatos 15 min fora de casa e ser recepcionada como se voltasse de uma viagem ao redor do mundo, acordar com algo gelado fungando bem no meio da cara, abrir os olhos e ver aquela coisa de olhar doce abanar o rabinho e explodir de felicidade após um sorriso, são coisas que realmente só quem tem um cão sabe a sensação.


6 anos
            Hoje, olho para o lado e vejo uma senhorinha gorda, desajeitada (não, isso não ficou na infância canina, ela continua desajeitada igual a mim), com os bigodes grisalhos e alguns pelos brancos pelo corpo. Toda a agitação dos áureos anos, hoje transformou-se em calmaria. Os olhinhos ainda brilham, ainda emanam um amor incondicional, mas estão ficando com a íris – que guarda tantas memórias e histórias – azulada e opaca. A ração tem de ser mole, pois já não consegue morder coisas muito duras. Muitas vezes ela dorme um sono pesado e me assusta. O que antes era algo trivial, como vir correndo e subir na minha cama, pisoteando meus pés como se fossem de borracha, hoje já não é tão fácil; há vezes em que tenho de ajudá-la; ela fica em pé, com as patinhas dianteiras na beirada da cama e me olha com aquele ar de “me ajuda?”. 


7 anos
            É lógico que eu te ajudo, minha parceira! Te ajudo, te cuido, te mimo, te amo e sou capaz de qualquer coisa por você! Começamos nossa história juntas, você cresceu comigo, me deu colo, me impediu de inúmeras burradas com seu jeitinho doce, me protege até de mim mesma, me trouxe uma alegria que não sei mensurar, me conquistou por completo com seu chorinho constante e seu olhar dengoso, com seu jeito preguiçoso. Lambe minhas lágrimas e festeja minhas alegrias. Como posso não te amar incondicionalmente?





8 anos
            Hoje, vivendo a aposentadoria, já velhinha e mais preguiçosa do que sempre foi, ela me faz ficar com o coração um tanto quanto apertado. Não consigo, por maior que seja meu esforço, imaginar minha vida sem os pisões que ela dá nos meus pés, sem seu latido senil ao me ver chegar, sem seus arrotos a um palmo do meu nariz. Não sei se ainda lembro como é dormir sozinha na cama, sem ter de me posicionar em forma de “S”. Não consigo mais tomar banho sozinha, sem tê-la deitadinha no canto mais distante possível do box me olhando com cara de “você não vai me dar banho, né?”.


9 anos
            Sou grata, muito grata ao Universo por tê-la colocado em meu caminho. Sou grata por ter descido no ponto errado naquele 16 de Agosto de 2004, ter ido ao pet shop e a visto deitadinha, dormindo enroladinha – como dorme até hoje – e trazido para casa comigo. Sou grata por tudo o que aprendi e aprendo com ela dia após dia. Sou grata por ela me fazer sentir esse amor absurdo, que me dá um nó na garganta. Sou grata pela sua confiança. Sou grata por ela estar sempre ao meu lado, por ser minha “parceira de crime”, minha preguiça ambulante, meu pedacinho de dengo e manha, minha mocinha linda, com o olhar mais doce que já tive a oportunidade de ver.




10 anos
            Obrigada por existir, minha Flor de Lótus! Obrigada por encher minha vida com poesia a cada latido, a cada abanar de rabo, a cada manha, a cada olhar terno, a cada gesto de confiança. Você me faz ser uma pessoa melhor a cada dia. Você me mostra o quão preciosa é a vida com amor.
Peço que o universo te dê muita saúde e muitos anos de vida, pois ainda temos muitas coisas pela frente e você vai sempre comigo, não importa aonde nem como. E mesmo depois que você cumprir sua missão aqui nesse mundo, tenho certeza que nos reencontraremos e você virá correndo para os meus braços, como faz desde que chegou em minha vida, todas as vezes em que chego em casa.





11 anos

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Crônicas do Cotidiano IV - Depois do abraço

            Depois do abraço, o cheiro continua envolvendo o corpo. É como se um pedaço da pessoa permanecesse conosco mesmo após a partida. Dá uma sensação de conforto, de colo. Traz carinho ao coração, mantém viva a vontade de cuidar, de querer ter por perto, de encher de beijos, de acariciar a face e beijar a boca com ternura, com entrega. Basta fechar os olhos para poder reviver cada segundo dentro do abraço, ouvindo a respiração, a temperatura dos corpos, sentindo os corações batendo juntos, os rostos colados, as mãos apertando, sentindo o corpo do outro.
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            Vejo o “depois do abraço” análogo ao “depois do café”. O gosto permanece na boca tal qual a sensação do corpo a corpo permanece no sistema sensorial. Assim como a bebida permanece dentro de nosso corpo, um pedacinho do outro também permanece dentro do coração; é como se esse pedacinho já morasse aqui e o abraço viesse para regá-lo. O aroma do café permanece no ar por algum tempo, assim como o cheiro do outro sutilmente envolve as narinas. Da mesma forma que alguns fecham os olhos para, ao privarem-se de demais estímulos, sentirem melhor o gosto do café, durante o abraço os olhos também são fechados a fim de sentir a alma do ouro. A xícara, como alguns fios de cabelo, mantém fresca a memória, atestando a veracidade do encontro, seja dos corpos, seja do lábio com o café.
            Talvez, para os outros, o abraço sempre tenha tido esse significado que hoje tem para mim. Confesso que sempre fui meio avessa a qualquer tipo de toque, de proximidade. Sempre fiz com que detalhes – como o cheiro da pessoa, os fios de cabelo, a respiração, a sensação de estar nos braços de alguém – passassem em branco. Sempre tive medo de ser tocada. Nunca me senti bem ao permitir que vissem, logo de cara, os arranhões e as feridas que trago aqui dentro. Talvez porque nunca tivessem olhado com cuidado e respeito, mas com ímpeto de “curar”.

            Sou grata ao tempo e às circunstâncias que me trouxeram essa nova percepção acerca do abraço.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Laços

            Chegou à igreja. As portas já haviam sido fechadas. Podia ouvir a música tocar e sentir o perfume dela na escadaria. Enquanto subia os degraus, imaginava que os pés dela haviam tocado aquele cimento rachado há poucos instantes.

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            Entrou. Se escondeu próximo à porta e pôde vê-la de costas. Véu longo, vestido rendado cor de champagne, seus fios claros misturavam-se ao tecido do véu.
            Acompanhou toda a cerimônia. As palavras do padre reverberando, ecoando, escorregando pelas abóbadas da igreja assim como lágrimas escorriam por seu rosto.
            No momento da troca de alianças, quando ela virou-se de lado, pôde ver o rosto dela. Maquiagem leve, boca rosada, aquele olhar melancólico e doce, porém distante. Pôde ver em slowmotion a aliança sendo colocada em seu dedo, as mãos trêmulas. Nesse momento, soluçou, não pôde conter a angústia que brotou em seu peito e saiu como um tsunami de lágrimas e desespero.
            O beijo selou o compromisso que ela acabara de firmar com outro alguém. Todos aplaudiram. Abaixou a cabeça e suspirou numa tentativa de recuperar as forças, se conformar e finalmente deixar aquele local eleito para roubá-la de uma vez por todas.
            “E todos os momentos que dividimos, todas as farpas que trocamos, os nossos beijos e abraços apaixonados, as coisas que aprendemos? Morreram aqui, assim, abruptamente?”, pensou.
            Assim que levantou a cabeça, procurando o caminho de volta para a nova vida – sem ela, sem os segredos, sem o “nós” – seus olhares cruzaram. Sentiu seu corpo gelar, o coração acelerar, asminhas mãos suarem e tremerem. Foi como se o tempo parasse. Se olharam fundo nos olhos, foi como se os olhos dela mostrassem um filme de tudo o que viveram nos anos em estiveram lado a lado. Deixou o buquê cair no chão, ficou branca como cera, com os lábios entreabertos.
            Chegou em casa, fechou a porta e gritou. Gritou com toda a alma, com as entranhas, com as vísceras, com cada célula do corpo. Um grito que misturava horror, medo, desespero, agonia, saudade, incerteza... Sentou no chão, com as pernas encolhidas e chorou copiosamente, tentando expurgar a dor de ver aquele ser tão peculiar, cheio de detalhes grafados na alma, cheio de encantos e curvas casar-se, unir-se a outra pessoa, a qual não se sabe se será capaz de oferecer-lhe o devido cuidado, atenção e compreensão. Chorou por saber que havia perdido mas ainda havia laços que mantinham a união, tecidos a quatro mãos.
            Acordou com o som da campainha. Procurou o celular no meio das cobertas no sofá. Eram 6:43 da manhã. O porteiro não havia interfonado, não estava esperando ninguém e alguém jamais apareceria a esse horário caso prezasse pela vida. Ao fundo, Sam Smith inundava o ambiente com Latch.
            Foi tateando os móveis e a parede. Tropeçou nos sapatos e roupas espalhados pelo apartamento. A campainha tocava incessantemente.
            Após algumas tentativas, acertou a fechadura e abriu a porta.

            Era ela.

            Não disse nada. Apenas abriu os braços e olhou daquele jeito doce e perdido que lhe roubara o coração desde a primeira vez em que se viram. E conseguira roubar outra vez.

domingo, 29 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano III - Vento frio. Tempo vil.

            Chove lá fora. Sentada no sofá da sala, posso observar as plantas mais frágeis balançando com a força com que os pingos de água caem do céu. Os vidros estão ligeiramente embaçados, com algumas gotas escorrendo e formando linhas sinuosas e disformes – como a melancolia que escorre por minhas veias em dias como hoje -  até desaparecerem. Ao meu lado, uma caneca cheia de café forte, quente e sem açúcar. Do outro lado, minha cadela dormindo e esfregando na minha cara toda a ausência de preocupações de sua vida canina.
            O céu é branco como o infinito; não tem começo, meio, fim, perspectiva, nem sombra. Talvez tenha luz. Talvez.
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Na vida real não é possível aplicar filtros às cenas que nos desagradam, não tem aquela barrinha mágica do Instagram, cheia de filtros para todos os tipos de humor e estados de espírito. É preciso encarar a realidade tal qual se apresenta, olhar no espelho e enxergar os espinhos escondidos que arranham a alma. A vida não nos permite, como o aplicativo, poetizar imediatamente as angústias e incômodos.
           Cenas da infância, amores distantes, impossibilidades convenientes, possibilidades incômodas, memórias desfocadas, sentimentos emaranhados, cheiro de chuva. Vento frio. Tempo vil.

         Acendo um cigarro após três tentativas de fazer com que o isqueiro funcione. Solto a fumaça devagar, tentando enxergar algum tipo de padrão em sua forma, assim como tento compreender a caixinha de sentimentos que é aberta sempre que o céu está nublado e chuvoso. Talvez a chuva seja análoga às lágrimas que não escoam de dentro de mim quando me vejo deprimida diante de um dia cinzento.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano II - É preciso Poder para Sentir?

            Ainda não sei como consegui, de onde tirei forças para ir à aula hoje pela manhã. Foram as 2h mais longas da minha vida até agora. As palavras da professora coavam num vácuo dentro da minha cabeça, eram como ímãs colocados numa tela em branco feita de pano envolta numa belíssima moldura do sono mais genuíno.

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            A turma foi liberada no intervalo. Quase ajoelhei para agradecer à professora mais sorridente com quem já tive aula às 8h da madrugada. Sim, madrugada. Caminhei até o metrô conversando com duas amigas sobre algo que não me lembro, minha única recordação é uma delas contando que tinha medo de passar embaixo de árvores porque quando era pequena a mãe disse a ela que caíam uns bichos, tipo umas lagartas, que entravam pelo umbigo e se alojavam dentro das crianças. Confesso que mesmo com 22 anos fiquei levemente aterrorizada com a ideia de ter uma lagarta invadindo meu umbigo e fazendo morada dentro de mim. Já tenho tantos monstrinhos aqui...
            Quanto mais me aproximava de casa, mais me sentia tomada por aquela sensação de não ser mais senhora de mim mesma. Só conseguia pensar na minha cama, meu travesseiro macio, meu cobertor quentinho. Cheguei, despachei a bolsa e o fone em qualquer canto da casa e me entreguei aos encantos da minha cama, me deixei seduzir mesmo sabendo que teria de acordar em no máximo 1h porque tinha compromisso.
            Pouco antes de pegar no sono, totalmente tomada por aquela sensação indescritível de quando estamos a poucos instantes de fecharmos a porta da carruagem que nos levará aos braços de Morfeu, me peguei pensando sobre os prazeres da vida. Como boa aquariana, lógico que meus pensamentos não cessaram. Em questão de minutos, cheguei à conclusão de que todos, todos os prazeres da vida são imateriais, são aqueles segundos ou minutos de clímax, seja antes de dormir, depois da primeira garfada daquela comida maravilhosa, durante a primeira tragada no cigarro após horas de abstinência. O prazer acontece dentro de nós mesmos, é imediato e indescritível – ou alguém já conseguiu definir com precisão universal o que é o prazer, aquele depois do cafezinho, do cochilo ou do abraço, como conseguiram descrever o medo?
            Quando compramos uma roupa nova, por exemplo, o real prazer não é comprar, não é vestir, não é exibir a nova aquisição. O real prazer é a sensação, ou melhor, as sensações que temos ao vestirmos algo que nos deixará mais bonitas, confiantes, especiais. O sorriso no rosto, a auto aprovação, a autoconfiança. O prazer em comprar uma roupa nova é poder sair às ruas sentindo-se segura, com a certeza de estar bonita para si mesma, mesmo sabendo que todos temos gostos diferentes e que provavelmente alguém irá odiar o novo look. Mesmo o prazer dos exibicionistas, creio que esteja atrelado a uma imensa baixa-estima, superada momentaneamente enquanto atrai olhares e elogios, atenção no geral, momentos em que sentem-se especiais, confiantes, únicos, de bem consigo mesmos.
            Creio que a famosa frase feita “o prazer da vida está nas pequenas coisas” veio dessa sensação ainda sem nome ou classificação, que dura apenas alguns instantes após consumado o ato que satisfaz o desejo, aquele êxtase, como se estivéssemos no topo da montanha-russa, prestes a despencarmos de sabe-se lá quantos metros, termos a tão adorada adrenalina liberada, sentirmos o vento no rosto, a incerteza, a dúvida “é medo ou prazer?” para depois chegarmos à conclusão “medo também é prazer.”
            O que quero colocar, deixar para reflexão, é o seguinte: O prazer está atrelado ao poder? É realmente preciso poder para sentir?
Partindo de que o poder é como uma viga firme de madeira nobre, que garante estabilidade, e o prazer é uma sensação efêmera, a linha que o separa do poder é realmente tão tênue assim, ou é mais cômodo não enxergar o abismo que há entre prazer e poder, assim não se faz necessário assumir que somos todos iguais e sentimos os mesmos prazeres diante de necessidades básicas, mudando apenas a forma, os instrumentos utilizados para que seja alcançado o prazer? Lembrando que quanto maior o poder, mais sofisticados e caros, são os instrumentos, e consequentemente são tidos como melhores, sendo que nem sempre o mais caro e sofisticado é, de fato, o melhor.

             

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Crônicas do Cotidiano I - Chuva, risadas e eco-bitucas

       Como todos os dias, terça-feira desci para fumar com uma amiga. Depois de xingar por não conseguir compreender o porquê de ter mais ou menos umas 20 catracas na faculdade e apenas 5 disponíveis para uso, saímos e ficamos em pé conversando ao lado daquele objeto amassado e fedorento que chamam de cinzeiro e que a faculdade gentilmente disponibiliza para os alunos. Enquanto conversávamos, eu ia mudando de posição de acordo com a direção que o vento escolhia para acariciar a face de quem estivesse por lá, já que minha amiga não fuma e mesmo que fumasse, não é merecedora da divina fragrância do produto fumígeno com mais de 4.700 substâncias tóxicas. 

            Entre 3 ou 4 assuntos sendo conversados simultaneamente, decidimos sentar em uma espécie de bancos que fizeram com páletes e colocaram meia dúzia de plantas, num estilo eco-minimalista - se é que existe esse estilo – que me soa como uma tentativa de levar algo sustentável e ecológico ao edifício de 13 andares com janelas de vidro espelhado sustentado por vigas de algum tipo de metal. Os vãos das madeiras do chão são decorados por bitucas de cigarros, das mais variadas, filtro amarelo, branco, preto, vermelho, para todos os gostos! Fiquei me perguntando o porquê de terem tantas lindas bitucas decorando o espaço “eco”, sendo que a menos de um metro havia um daqueles cinzeiros lindos, com água empoçada.
            Conversamos sobre nossas angústias (sempre tão parecidas que se combinássemos, não seríamos capazes de viver situações tão iguais) e sobre minhas famosas “bolas fora”, coisas que burlam o filtro e saem da minha boca por pura impulsividade, me colocando em saias justas que ficam praticamente saias a vácuo, porque eu não percebo. No fim das contas, acabamos dando risada de nossos próprios problemas, e seguindo em frente, sabendo que podemos contar uma com a outra. Meio a indecisões, ansiedade e adoráveis bitucas no chão, resolvemos eternizar aquele momento em uma fotografia. Após umas 5 ou 6 tentativas, a chuva estava dando o ar de sua graça e ambas tínhamos tarefas a serem cumpridas, finalmente conseguimos uma foto que não fosse ingrata.

            A vida não é e nunca será perfeita, livre de empecilhos, de “pedras no caminho”, mas são esses “pequenos” momentos que fazem com que ela seja tão mágica e sedutora. Ter uma amiga dessas “ponta firme” que passa mal de rir junto comigo, um cigarro na bolsa, levantar e perceber que estava com a calça úmida e ter dado várias risadas daquelas tão gostosas são coisas impagáveis! Sim, estava chovendo, cheirando a cigarro e chão de cimento molhado, ventando frio, os cabelos ficando arrepiados por conta das gotas d’água e do vento, mas eu me senti feliz e plena, dona de mim e da minha vida, sabendo enxergar, viver e valorizar as coisas boas mesmo de situações repletas de motivos para me fazer ficar com cara de bunda o resto do dia.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Quero...

- Oi
- Oi, tudo bem?
- Tudo... Fazendo?
- Em casa, vendo tv, e você?
- Aki na frente, na sua porta...

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            Nesse instante, todos os móveis decidem entreporem-se aos meus dedos dos pés, as chaves se escondem e dizem ironicamente “cadêêêê?”, o cerebelo perde o controle da coordenação motora, o coração atropela a sincronia entre sístoles e diástoles. Saliva? O que é? De onde vem? Para que serve? Trocar a roupa e arrumar o cabelo são detalhes ínfimos.
            Nada disso importa! Tudo o que desejo é poder te ver, te chamar pelos apelidinhos escrotinhos, me jogar nos teus braços e te abraçar apertado, te olhar nos olhos, fazer carinho no teu rosto, falar merda pra te ver sorrir e balançar a cabeça pros lados, me chamando de tonta, me segurando firme e fazendo cócegas.
            Quero morar no teu colo, criar raízes ao teu lado, te ver voar alto, abrir essas asas grandes e macias e te ver vivendo toda a magia de ser livre. Quero teus sorrisos e tuas lágrimas, teu sono e tua vigília vendo documentários sobre parasitologia ou paranormalidade às 03:00 da manhã. Quero te surpreender com um almoço chique de macarrão com salsicha, ou uma belíssima caixa de quindins gigantes. Quero ficar ao teu lado vendo tv ou vídeos idiotas na internet, bagunçar teu cabelo e sair correndo das tuas pequenas havaianas 39. Quero ver tua cara de prazer ao conseguir me pegar e prender no teu colo, com a havaianas em mãos, rindo do meu desespero e me chamando de “bundona”. Quero ver teu desespero quando minha cadela decidir te lamber loucamente, subir no teu colo e encher tua roupa de pelos. Quero acordar ao teu lado, te ver cumprir todo o ritual matinal enquanto cochilo e me arrumo em espetaculares 15 minutos.
            Quero poder estar por perto quando teu coração estiver apertado dentro do peito, te ver imersa no aparente silêncio e frieza, mas quero estar ali caso você caia, pra te estender a mão, levantar e colocar no meu colo, poder dizer que vai ficar tudo bem, que você não está só, que eu sempre estarei ali pra te fazer rir de alguma besteira, te irritar, te morder ou simplesmente te ouvir... sem espanto, sem julgamento, sem desdém nem pena; apenas ouvir.

            Enquanto não posso, me entrego de braços abertos à certeza de morar em teu coração e pensamentos, de saber que mesmo longe estou aí dentro da mesma forma que você está aqui dentro. Estou aqui. Mas estou aí. E tenho você aqui também.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Confissões de uma péssima inquilina

Alguns dias, sou barulhenta demais. Outros, meu silêncio coloca em dúvida minha existência.
Não cumprimento vizinhos, simplesmente abaixo a cabeça e os atravesso como se fossem seres etéreos. Vez ou outra, sento na janela e sorrio para Deus, o mundo e mais um, distribuindo flores a quem se dispuser a simplesmente me devolver um sorriso, mesmo que apenas com o olhar.

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Ha dias em que a casa está colorida, cheirosa, limpa e aconchegante, pronta para acolher com amor e carinho a todos que desejarem entrar, passar pela porta florida. Há outros em que o cheiro de mofo e a escuridão embriagam até a mim.
Nem sempre cuido das rachaduras nos muros do quintal. Em algumas manhãs, acordo desejando substituí-lo por uma linda cerquinha branca que proteja meus girassois (proteger de quê, exatamente, não sei. Vai ver, é aquele medo humano de ter sua “propriedade” saqueada, mesmo que tal propriedade seja alugada, emprestada, cedida. O que tem lá é meu e vou proteger, mesmo que seja com uma cerquinha branca e baixa, afinal, para algo ter significado real, deve, primeiro, ter significação mental e é o tamanho desta que, ao ser transposto à realidade, acalma a ansiedade diante da possibilidade de ter os desejos contrariados, no caso, ter meus girassois roubados por algum tolo apaixonado que deseje agradar a quem ama – o que, num dia bom, seria totalmente perdoável).
Nunca pago em dia as parcelas do aluguel. É como se o atraso fosse a regra. Nunca gostei de relógio, de tempo. O tic-tac sempre me deixou exasperada. É como se o barulho do relógio fosse o som da vida moendo meus sonhos lentamente... tic-tac... lá sei a vai a inocência... tic-tac... adeus pessoas que amo... tic-tac... mais uma porta batida sem dó... tic-tac, tic-tac, tic-tac! Tempo, para mim, nunca foi cronológico, sempre foi funcional. Uma hora pode ter a duração de um ano, só depende do fato que ela antecede. Dez anos podem passar num piscar de olhos e só nos darmos conta ao encontrarmos aqueles fios grisalhos que não habitavam o couro cabeludo há tão pouco tempo.
Não espere encontrar um ser sorridente e arrumado ao tocar a campainha. Contente-se com meu pijama de mendigo, meus cabelos engruvinhados em volta de algum elástico velho, meias largas e cara feia. Odeio som de campainha. Acho uma imensa invasão. O fulano aparece quando dá na veneta, toca aquela merda até que ela se torne uma maneira de coerção e me faça, finalmente, assumir que estou em casa. E o meu direito de simplesmente não querer interagir? E a minha vontade de permanecer entregue às entranhas do meu mundo? Vão para a casa do chapéu, não é mesmo? O importante é estar sempre bem, sempre dizer o que quer ser escutado e absorvido, estar sempre disposta e sorridente, ser uma excepcional anfitriã!
Em suma, não venha à minha casa se não for convidado. Vou bater a porta na tua cara.
Não queira os meus girassois a menos que eu lhe ofereça. Eles são meus!
Não espere que eu siga as regras universais, que cumpra prazos e horários. Não vou abaixar a música às 22h porque meu tempo é diferente do teu.
Não idealize uma pessoa sensata caso me veja sentada na janela olhando para cima e cantarolando alguma canção sentimental.
Não me queira como inquilina se não pretende ser um proprietário com imensa capacidade de compreensão, delicadeza, cuidado, carinho e acima de tudo, respeito.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

E agora? Nasci humana...

Sim, meus queridos e queridas, o ser humano é falho.
E, ao contrário do que se diz por aí, ser falho não é motivo de vergonha, não é algo que deva ser escondido, trancafiado a sete chaves naquele baú no fundo da alma, escondido de todo o resto da humanidade, coberto com mil adereços que agradem ao coletivo, que caiba dentro das caixas impostas pela “normalidade” higienista do começo do século passado. Não há porque temer ter as falhas descobertas. Elas que nos fazem humanos, elas que nos constituem enquanto sujeitos cientes de si mesmos, elas que grifam nossa individualidade, elas que fazem com que sejamos encantadores àqueles que nos veem sem julgamento no olhar.


            Muitas vezes, devido ao hábito de ter o indicador de outrem colado à face, antecipando palavras rudes, acabamos soltando espinhos antes mesmo de conhecer o terreno em que pisamos. Agir assim é ser falho? Sim, é. É feio? Não, não é. Aos olhos de alguém com o coração aberto, pronto a acolher tais falhas, “defeitos de fabricação”, essas falhas trazem à tona abraços, palavras aconchegantes, olhares doces e repletos de compreensão, ouvidos prontos a acolher.
            Mas uma hora a gente aprende. Uma hora “cai a ficha” de que todos os seres humanos são diferentes, e por mais que durante a vida tenhamos encontrado mais gente disposta a nos puxar para baixo, há, sim, pessoas dispostas a simplesmente nos acolher, sem pronunciar um “a”, sequer. Apenas nos colocar dentro de um abraço com todas as nossas peculiaridades, limitações, dificuldades e falhas.


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

(Vi)ver

Sinto uma vontade imensa de sair estampando essa frase nas testas das pessoas: Não estamos quebrados, apenas envergados, e podemos reaprender a amar!

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Podemos reaprender a respeitarmos uns aos outros, podemos entender o ponto de vista do outro sem agredi-lo, podemos não fechar os olhos à dor alheia, podemos não pisar naquela flor que nasceu nas chagas do cimento, podemos abraçar com o coração, podemos nos emocionar, podemos criar relações sólidas com as pessoas, podemos desejar um bom dia ao motorista do ônibus...
Podemos enxergar através das gotas no vidro da janela em um dia chuvoso e percebermos que a vida continua linda, com infinitas possibilidades todos os dias, repleta de cores e aromas agradáveis, mãe de toda essa gente que passa despercebida todos os dias no corre-corre da rotina.
A vida continua de braços abertos a todos nós, apenas esperando que saiamos de nossas poltronas estofadas cuidadosamente alojadas em nossas zonas de conforto e a abracemos com toda a garra, com toda a força, com a mesma ânsia de viver com a qual deixamos os úteros de nossas mães e num grito de vitória fomos recebidos nesse mundão tão diversamente belo, com características suficientes para agradar a todos os tipos de gostos e olhares, basta mudarmos um pouquinho o ângulo para (vi)vermos...


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Quero...

Quero brilho no olhar, pés descalços e lama.
Quero amém a cada conquista.
Quero paçoca, brigadeiro e bolinho-de-chuva.
Quero barreiras transpostas.
Quero canetas coloridas no estojo com glitter.
Quero independência com cheiro de café fresco.
Quero pijama de ursinho, pipoca e comédia romântica.




Quero ser a mulher-menina que muda a cadeira de lugar ao fim de cada pôr-do-Sol para ver vários ao dia; que admira e sabe como chegar à palmeira onde canta o sabiá; que não faz todo dia tudo sempre igual; que não vai embora pra Pasárgada; que trás no olhar os vastos céus e é dona de todos os ouros e clarões; que é bela como um sonho de pedra; que sabe que o amor é eterno só enquanto dura; que segue o amor, ainda que por caminhos agrestes e escarpados; que fica com a pureza da resposta das crianças; que perdoa as feias porque sabe que beleza é fundamental; que ama o primeiro amor como ama o segundo, sem chorar a morte do primeiro nem temer o segundo; que é sapateiro, diabo e anjo...

...que nasceu, cresce e morrerá amando como ama o amor.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Momentum

Conforme ela seguia as curvas da estrada rodeada por um verde indescritível, eu não conseguia avaliar com precisão a paz e alegria que se instalaram dentro de mim.

            - Hey, onde você está? – Disse, sorrindo e colocando a mão em minha perna, apertando meu joelho.
            - Estava longe, meu bem. Muito longe. – Respondi, colocando minha mão sobre a dela e entrelaçando nossos dedos.



            - Ei, dorminhoca, chegamos.

Abri os olhos e me deparei com seu sorriso ao meu lado esquerdo, seus dedos entre meu cabelo e uma paisagem deslumbrante ao lado direito; areia quase branca, fofa, água transparente, azulada, cheiro de mar.
Já devidamente acomodadas, ela esticou a esteira ao meu lado e deitou-se. Nos olhamos e apenas sorrimos. Fechei os olhos, suspirei e me entreguei aos raios do Sol tomando cada pedacinho do meu corpo.
Tentei entender como era possível alguém ser dona de uma simplicidade tão sofisticada, desprovida de maiores luxos e frescuras (daquelas que nos enchem os olhos) e ainda assim ser tão absurdamente envolvente e encantadora. Ela era simplesmente ela, e isso a fazia tão encantadora, tão simplesmente encantadora.
Ela era como aquela orquídea na sala. Sozinha, sem enfeites, sem mais flores, dentro de um vaso transparente. Enfeita, perfuma, colore, encanta, embriaga.
Baudelaire sempre foi um de meus poetas preferidos. Um dos que me roubam o coração. Suas palavras sempre vieram como flechas. E em um de seus escritos, ele diz:

É preciso que te embriagues sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
[...]
Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.

            Ela me deixava completamente embriagada. De poesia e de virtude, de doçura e voracidade, de inteligência e simplicidade, de instinto e vulgaridade.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sobre dois Lírios

Sabe aquelas pessoas que amamos mesmo tendo sido privadas do convívio?
Sabe aquele amor terno, doce, puro e forte, que colore o coração como se fossem várias borboletas coloridas sobrevoando e deixando um rastro de luz por onde passam, como se tivessem o poder de dissipar toda e qualquer saudade pesada e triste?




Sinto que há um laço invisível que me une a vocês, como se fosse um cordão transparente que reflete todas as cores mais belas, que sequer existem aqui nesse mundo onde vocês apenas passaram e foram rapidamente recolhidas por um sopro.
Lembro-me como se fosse hoje de vocês duas na barriga da mamãe fazendo a maior algazarra quando eu chegava perto, fosse no banho – passando um bom tempo passando o sabonete na barriga da mamãe e conversando com vocês – ou antes de dormir, quando enchia vocês duas de beijos e podia ver seus pezinhos, pegá-los e gritar “Olha, mamãe, um pezinho!”.
Como vocês sabem, sou um ser extremamente desapegado e desprovido de sentimentos convencionais, mas devo confessar que há dias em que sinto uma dorzinha bem aguda quando penso que poderíamos estar as três juntas, cada uma com seu jeitinho, com seus gostos, opiniões e forma de encarar e viver a vida.
Já faz 18 anos e só agora consegui escrever algo relacionado a vocês duas, minhas pequenas. Durante um bom tempo, não podia falar em vocês sem chorar.
Quando soube que vocês estavam morando na barriga da mamãe, senti uma felicidade imensa, uma gratidão maior ainda. Me senti privilegiada e honrada por ter sido escolhida para ser irmã de duas criancinhas, porque vocês só nos deixaram saber que eram menininhas quando nasceram.
Quando a mamãe e o papai cogitaram comprar os bercinhos de vocês, lembro que chorei uma noite inteira, inconformada, porque queria que vocês dormissem comigo, na minha cama. Onde já se viu coloca-las em berços? Um insulto ao amor que já crescia dentro do meu peito!
Como vocês sabem, eu tinha apenas 3 aninhos e não pude vê-las nem tocá-las. Mas quero deixar aqui nessa carta parte do amor que sinto por vocês. Dizer que as carrego comigo sempre, que a cada vez que tenho de responder que sou filha única sinto uma pontadinha no coração, que ainda vejo as fotinhos de vocês dentro da barriga da mamãe e me pergunto o porquê de terem sido levadas embora tão abruptamente. Sempre que penso em vocês, é como se a vida ficasse mais doce, mais simples. É como se vocês trouxessem paz ao meu coração.
 Saibam que amo incondicionalmente vocês duas, de onde quer que estejam e espero pelo dia em que poderemos nos reencontrar!

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Delirium

            
Emergindo do buraco negro, podiam ser vistos alguns fios pretos de cabelo, iluminados pelas luzes das velas que derretiam e melavam os candelabros de ouro, grandes, reluzentes e ardentes, na noite fria de Outubro. Seguindo os fios, lá estava seu corpo, deitado, gelado, pálido, inerte. Lábios entreabertos e pálidos, olhos abertos e fixos.
Gritos. Altos. Desesperados. Aflitos.
Na urna de ébano, seu corpo gelado e rígido repousava, passando aos espectadores uma expressão de sono profundo e relaxante. Sua face fora maquiada. Seus lábios, agora, eram rosados e estavam fechados, costurados, para sempre calados. Seus olhos colados, permanentemente cegos. Seus cílios faziam sombra.
Entre seus dedos, estava um terço, desrespeitosamente colocado ali.

 Riverside Church, Harlem, New York City. Tumblr

            Havia mais ou menos 50 pessoas chorando sua morte. Fungando com os narizes escorrendo, lutando para que a coriza não escorresse e invadisse os lábios. O barulho dos narizes ecoava na sala fria de mármore.
Todos cochichavam simultaneamente, era um tormento, um momento de puro lamento e demência. Soluços, narizes escorrendo, cochichos, gemidos, faces desfiguradas pelo choro.
Como podia, apenas uma morte, afetar a tantas pessoas? Quantas delas estavam lá realmente por amor? Quantas por remorso? Quantas por exibicionismo?

            A porta abriu. Entrou terra vermelha, trazida pelo vento e pelos passos do sapato de cromo alemão, coberto bela batina preta do amável senhor com um kipá na careca. Sua face altruísta trazia algum tipo de falso conforto aos espectadores. Parou ao lado da urna e começou a ladainha com sua bíblia em mãos.
Dava para ouvir os barulhos dos narizes e os gritos abafados de desespero aumentando gradativamente a intensidade e o volume.
O barulho do vento competia com a voz do sacerdote.

            Todas as velas foram apagadas pelo vento gelado que viera levar consigo a pobre alma amputada precocemente do corpo que lhe fora dado. Silêncio imediato. Calafrios. Medo. Fé cristã momentaneamente esquecida.

            Amanhece. O céu alaranjado realça as gotas de orvalho na grama do cemitério.
Uma cova. Um caixão. Vinte sobreviventes à madrugada de despedida da massa de músculos, nervos, veias, órgãos, líquidos e excrementos, que rompeu o contrato de aluguel expulsando a inquilina chamada Alma e pagando a multa contratual com a não existência e seus mistérios.
O corpo começava a expelir os líquidos, ficar roxo, inchado, desfigurado. Adquirindo a feição de dor e desespero em contrapartida à expressão inerte com que fora encontrado.

            Enquanto a urna é colocada na cova, passa correndo um palhaço com roupas sujas, rasgadas, fedendo a crack e cachaça barata. Ele gargalha, grita, espirra água nas pessoas, vira cambalhotas, vomita nos pés dos sofredores. Cospe na cova e sai gritando, de braços abertos, recitando algum poema alegre, um Ode à Vida, atormentando tanto quanto as melodias de Vivaldi.
Ao sair correndo e passar pelo portão do cemitério, é atropelado por um caminhão, tendo seu cérebro esmagado, seus miolos espalhados pela avenida.
Gritos de horror. Desmaios. Choque. Terror.
Todos perdem completamente o foco no enterro e dirigem-se ao local da nova desgraça. Desgraça fresca, cheiro de corpo recém-morto, sangue quente, miolos macios.
É quando o palhaço abre os olhos e solta uma risada profundamente perturbadora e dissimulada.

            Todas as pessoas somem, viram fumaça negra, pó.

O motorista desce do caminhão, recolhe o corpo e seus miolos, jogando-os dentro do caminhão escrito “Açougue”, fecha as portas e segue viagem, afinal, o show deve continuar a qualquer preço.

Ali se ia

   - Alícia!
    
Imagem: Avenida Paulista, São Paulo, SP, Ana Paula Costa. Tumblr


   Ouvia o eco de sua própria voz buscando por Alícia naquele mar de gente indo e vindo, falando ao celular, gesticulando, se misturando na faixa de pedestres até que o semáforo ficasse novamente vermelho e uma fila de carros levasse Alícia embora de vez de sua vida.
Abaixou a cabeça, olhou seus pés, suas mãos na altura do quadril, seus braços largados ao longo do corpo. Respirou fundo e prendeu o ar numa tentativa inútil de conter a dor. Fechou os olhos e lembrou daqueles dedos finos e delicados escorregando de suas mãos para nunca mais tocá-la. Pôde sentir o perfume daqueles fios dourados – quase brancos – sendo despenteados pelo vento enquanto Alícia corria sem rumo.
Virou-se devagar e sentou-se no banco mais próximo. Com as mãos repousadas sobre os joelhos, lembrou do dia em que se conheceram. A primeira vez em que se deparou com o encanto daquele sorriso largo no rosto adornado por sardas pequenas e harmoniosas, que contornavam os olhos pequeninos e azulados. Lembrou-se da sensação “gelada” que tomou conta de seu peito naqueles cinco segundos em que Alícia sorriu. Sentiu as lágrimas quentes e pesadas caírem de seus olhos e serem absorvidas pelo algodão de sua calça marrom.

   - Ah, Alícia! – Sussurrou quando, de cabeça baixa, enfiou os dedos entre os fios de cabelo até chegar com as mãos à nuca, onde cruzou os dedos e ficou imóvel, apenas ouvindo o fluxo sanguíneo e sentindo seu coração bombear o sangue cada vez mais rápido e com mais força.

   Entrou no apartamento – ainda repleto de Alícia; seu perfume, sua bagunça, a louça suja na pia, os chinelos desalinhados ao lado de sua cadeira, o cinzeiro sem caber mais um átomo sequer – tirou os sapatos e deparou-se com sua face desfigurada diante do espelho. Olhou-se de cima abaixo. Pensou como seria sua vida sem Alícia dali em diante. Sentiu seu peito formigar e arder.
Com os cabelos úmidos de suor e colados à testa, foi ao banheiro. Abriu a torneira, ouviu a água correr por alguns instantes. Colocou o rosto embaixo d’água até que ficasse sem ar. Fechou a torneira, levantou o rosto e ouviu barulho de vidro se partindo. Quebrara o copo que Alícia havia esquecido no banheiro, como fazia todos os dias. Viu sua mão esquerda cortada e sangrando; não doía. Passou a mão no espelho à sua frente, como se borrasse sua própria imagem. Não se reconhecia mais. Alícia havia levado consigo sua identidade, seu coração, sua garra de viver.


   - Rápido, moça! Tem um corpo aqui no canteiro! – Berrava o porteiro – Não, são sei se é homem ou mulher, tem sangue pra tudo quanto é lado, não consigo chegar perto!